terça-feira, 29 de julho de 2008

Com leite


Todas as noites eu vinha pondo leite na canequinha no chão. Manhã seguinte, o leite ainda lá. Jogava fora e ia viver. Afinal, jurei que viveria. Fiz uma promessa que deixaria a vida acontecer. As horas do dia passavam, assim como passam.
Noite. Voltava para casa, exausta de viver e punha o leite na canequinha.
Manhã seguinte adivinha? O leite estava lá. Estava me cansando disso. Era como se o pouco feito fora da vida jurada e prometida não tivesse valor. Ele não vinha miar ou beber. Talvez estivesse vivendo também. Talvez no início de ser gato tivesse prometido deixar a vida acontecer e não tivesse tempo para tomar o leite que eu oferecia.
Essa semana acordei gata. Subi no telhado, atrás dele. Psss, psss. Não encontrei além de telhas e folhas que são casas de parasitas sujos. Pulei do telhado, esperando quebrar a perna e poder viver um pouco menos a vida prometida. Mas aquele era meu dia gata. Não quebrei pernas. E lá fui eu para a vida de balões. De onde se vê o mundo de longe. De onde uma árvore é tão pequena que cheguei a duvidar que existisse.
Vida de assentos. Pousos calmos, noites sem chuva e pipas sem linha. Fui lá viver. Ontem à noite quando coloquei o leite na caneca, me lembrei: eu não tenho gato.

Foto de
mehmeturgut - deviantart

terça-feira, 22 de julho de 2008

Uma parte da viagem que eu lembrei


- Podíamos beber muito hoje a noite, não é?
- Você é louca? Pra que?
- Para espairecer.
-Não.
Saí sozinha. Eu gosto de sair sozinha. Não sinto vergonha de um passo depois do outro ouvir apenas os barulhos dos meus pés. Sem vozes. Eu gosto. Sinto meu cabelo se movimentar, ponho a mão no bolso, a bolsa me carrega e saio sozinha sempre.
Ele não quis vir. Provavelmente vai ligar no meu celular imaginário mais tarde. Um celular que só ele acha que eu tenho. Porque todos que me conhecem sabem que eu sou contra celulares.
Fui pra primeira avenida iluminada que vi. Corro atrás de luzes. Como doida. Até de vaga-lume corro atrás. Preciso da iluminação boba da cidade pra me sentir viva às vezes. Preciso me sentir invisível. E ando como se fosse. Rio sozinha. Rio de quem me ri. Rio à toa.
Entrei num bar qualquer, não sei dizer o nome ou comentar sobre a freqüência. Pedi um whisky Não gosto muito de whisky, mas queria algo novo essa noite, a novidade líquida, em copos sólidos para uma mão fria e uma garganta seca. Virei o copo e pedi outro. Continuei sem ver ninguém, e na ilusão de ser invisível sou capaz de apostar que também não viram. Afinal eu estava tão leve, tão breve, tão aérea, tão feérica. Não me viram, é certo.
E o certo veio mesmo em líquido, como eu previa. Desceu correndo atrás do lá dentro. A bebida correu dentro de mim. Uma maratona de líquido. E lá dentro encontraram o que de mais escondidinho tem em mim. Eu mesma. Fizeram festa no meu estômago e correram pra o meu sangue. E eu, que apesar de invisível não sou insensível, senti tudo, tim tim por tim tim. Uma celebração sozinha de uma decisão que ainda nem chegou.
Sou assim, sempre quero bolo antes da festa, sempre choro antes do enterro e grito gol antes do jogo começar. Dias de silêncio sinalizam meu cansaço morto. Viva, faço barulho.
Na quarta dose tudo estava lindo. Aqui dentro, porque o bar eu não vi. Estava tudo tão claro, mais claro que a avenida. Eu disse que estava atrás de luzes. As encontrei aqui dentro, molhadas, mas luzes.
E todos os absurdos da vida choviam em meus pensamentos. Chuva forte. Não levei guarda-chuvas, me deixei molhar de absurdos e achei oportuno pensar sobre eles. Sobre as coisas que quebram quando eu esbarro. Caem no chão e vão pro lixo. Desaparecem. É assim, deixam de existir. Eu não gosto de coisas que deixam de existir. Se pudesse escolher queria que tudo continuasse existindo. Perto de mim, correndo o risco de quebrar, mas existindo. Assim o cuidado não seria tão necessário.
É muito difícil tomar cuidado. É muito difícil ser cuidadosa. Eu prezo, mas esbarro. E aí, sem culpa, é sem querer. Mas nesses sem quereres as coisas deixam de existir. Um absurdo.
E tem coisas que eu nem tenho pra quebrar. E vivo quebrando a existência delas. Destruindo idéias. Dizem que é por isso que eu nunca as consigo. Não acredito nisso. Não as tenho. Não tenho! E quanto mais eu acreditar em ter mais longe fico delas. Então uso as lembranças. Elas vêm com música. Toca a música e eu comemoro o que tive. Fecho os olhos e deixo o filme passar. Sem trailler, sem pipoca, sem fim, memórias de vida livre, sem bilhete de entrada. Lembro. E dizem que quem tem memória tem sempre história pra contar. Nisso eu acredito. Mas não conto histórias. Lembro. De abraços bêbados, de noites tão frias que os pés mal se mexiam. Lembro de doses duplas. Lembro de não entender a língua que não era minha. Lembro de sorrir largo e quente, de bebida e de embevecimento do novo. Ah, lembro. E só precisava estar lá, com a minha bota de viagens longas.
A cama era tão pequena que o amor ficava fácil. O quarto era tão bagunçado, que rir era comum. Os dias eram tão surreais que aceita-los não pedia esforço. Fácil! Era fácil, e eu lembro muito bem. E não tem análise que me convença do contrário, já que fui eu quem estive lá.
Não suporto pessoas que querem mexer nas minhas lembranças. Lembrança pressupõe ter vivido a coisa. E se as lembranças são minhas, eu as vivi. Tem poeta que diz se lembrar do que não viveu! Caro amigo, você pode ter sonhado, ansiado viver, mas não viveu. Lembrança é de fato ocorrido. Faça ocorrer. Nessa formalidade de ocorrência, eu prezo as minhas.
Às vezes sou formal de tão educada. Não vejo porque não sorrir para as pessoas. Não vejo porque não ser agradável e estender a mão. Não vejo porque. E assim sento no banco da praça e como pomba boba distribuo sorrisos que parecem sujeira. E eu continuo sorrindo. Até que, como criança, embirro e vou pra casa chorando. As tais coisas que não tenho. É delas que falo agora, pois a música acabou.
Uma época trabalhei numa ótica, há muito. E não tinha muita função a não ser sorrir. Me xingaram, eu pedi demissão e fui lavar pratos e sorrir com os faxineiros. Faz tempo. Era um tempo quando eu não pensava no que tinha que fazer. Eu apenas fazia. E era feliz. Eu tinha profissão. Mas não ligava. Nem missão, nem carreira, nem poupança. Vivia de hojes. Transportes públicos me carregavam nos braços da gentileza da cidade que eu morava. Era uma cidade gentil comigo e eu com ela. A coisa da troca.
É a música de lembrar voltou. E eu lembrei de braços dados. De beijos dados. De um tempo que acordar junto era motivo para dormir mais. De um tempo em que uma vela e uma garrafa eram decoração. Do tempo em que numa janela passava o filme do mundo. E eu assistia com ele. De mãos dadas.
Não dou mais as mãos. Ando sozinha, como sai hoje à noite. Sozinha. E bebo sozinha. Porque o que tenho, o que não tenho, o que existe, o que não existe mais, nada disso me faz companhia.

sábado, 19 de julho de 2008

Assino minha vida


Assino minha vida.
Registro-a em cartório com firma reconhecida.
Não preciso de testemunhas.
A vida que foi não precisa de testemunha além de mim e minhas memórias.
Passado meu, testemunha eu.
Nem quem amei é testemunha do que se realizou em mim.
Assino minha vida.
Minhas decisões foram chuvas de verão.
Refrescaram na hora, inundaram a avenida lá de baixo.
Os comerciantes reclamaram, a prefeitura se manifestou, saiu na tevê e no jornal.
Mas foram assim.
Meus amores foram intensos, lavrados com sangue, suor e cerveja gelada.
Noites longas. Manhãs de ressaca. Meus amores passaram.
E eu assino abaixo de todos. Reconheço firma deles também.
Fui tragédia em vários atos. E nos intervalos, a grande sala de espelhos estava aberta a todos.
Não precisou traje de gala, nem de convite vip. Quem veio, viu. Viu-se.
Fui teatro experimental, com exercícios de confiança e quedas no palco de madeira.
Os espetáculos foram bem ensaiados, pouco público pagante, muito publico errante e muitas cadeiras cativas.
Fui jogo de capoeira, fiz comprimento e meia lua noites inteiras.
Fui bailinho no escuro. Roubei vassouras e roubei meninos das meninas.
As meninas não gostaram, os meninos gostaram por pouco.
Fui jardim plantado novo.
Ainda sementes que não cresceram porque a terra fez muita força.
O adubo do saber estava em falta quando fui jardim.
Mas assino minha vida.
Quis um dia tudo colorido. Abusei das combinações.
Fiz bagunça de emoções e me dei mal nas reações.
Fui fraca como árvore nova. Caí.
Queria sabores e cheiros. Tudo de um pouco, inteiro!
Juntei dor, amor, compaixão, amizade, raiva, carência, tudo na mesma panela.
Fiz uma torta e minha vida nunca mais seguiu em linha reta.
Não comi nenhum pedaço, de medo de passar mal à noite.
À noite na casa vazia, onde o som é de medo de fantasmas.
A luz salva o coração disparado e a televisão é o consolo de quem não acredita em estar só.
Hoje acabo em texto seco. Em rudes palavras sem ligação.
Sem molho, sem tempero e sem ação.
Palavras que pedem pra sair e imploram pra ficar escondidas nos meus arquivos.
Mas me mostro, afinal assino a minha vida e a partir de agora quero testemunhas que me digam que o resto pode ser mais fácil.
Eu peço perdão. Perdão as pedras que chutei, aos lixos que derrubei, as garrafas que quebrei.
E tudo isso virou bagunça.
Mas eu assino minha vida.
Continuo sem receitas certas, sem saber quais cores combinam comigo, sem consciência de como fazer espetáculos com mais público pagante, sem parar de pedir perdão.
O que se realizou de mim é só resultado.
Não é culpa, não é arrependimento, não é frustração. Não!
Um dia ainda me lembro da longa viagem e assino dela também o que de mim hoje chora.



Foto:Tekno_love_song_by_Paulusa - deviantart

terça-feira, 15 de julho de 2008

Carta à uma senhora louca

Cara senhora,
Espero que esta carta a encontre gozando de muita saúde e gozando do que mais a senhora achar interessante. Não leve minha linguagem à mal, nem me tomes por fanfarrona. Sou apenas uma moça honesta, que vos escreve com a intenção de mante-la informada dos fatos.
Comigo tudo vai indo bem, acho que posso dizer isso. Indo como esperávamos. Manhãs geladas, dias mornos e noites frias. Meus cabelos cresceram e eu cortei. Minhas unhas cresceram e eu cortei. Meu dinheiro acabou e eu cortei despesas. Meu saco encheu e eu desliguei os telefones.
Quanto ao trabalho, tudo caminhando para o dinheiro. E não é assim que deve ser? Pois é, não me importo mais com o verdadeiro, vou atrás do dinheiro. Tenho conseguido fechar bons negócios. Nada interessante, que valha a pena ser detalhado. Mas fique tranqüila que apesar de estar passando uma fase difícil, não tenho feito dívidas.
A minha saúde, ah, a minha saúde! Estou meio capengando. Dores aqui, cansaço ali, náusea acolá. Dores de cabeça que comprimidos vermelhos ajudam a passar. Dores nas mãos de tanto digitar. Dores nos joelhos de tanto tempo sentada. Dirá a senhora que é a idade? Não! Não sou tão velha assim. Acho que é o cansaço do vazio que ando vivendo mesmo.
Meu tempo anda curto, como há muito não era. E sinto que estou ocupando-o com coisas que não valem a letra. Mas como disse a senhora, é preciso ir atrás do dinheiro.
Ando meio sem amigos. Sim! Alguns tinham defeitos que eu não podia suportar. Tantos outros acharam que eu tinha defeitos que eles não podiam suportar. Outros que suporto, estão muito longe, em outro continente ou outra cidade, para as quais me encontro impossibilitada de ir.
Algumas amizades se mostraram inverídicas também. Nada sério como a senhora diz, mas não compensava leva-las para frente.
Para a senhora nada é sério, não é? Eu posso e devo passar por cima de tudo isso. Bem, na fé, ando fazendo o que a senhora me aconselhou.
Na minha família está tudo bem. Alguns ficando velhos de idade, outros velhos de cabeça. Uns se achegando, outros cada vez mais distantes. Mas têm as crianças agora. Não são minhas, mas parte de mim. E elas estão cada vez mais lindas. Esperança, sim, as crianças são a esperança.
Quanto ao meu coração, parece bater bem por enquanto. Uns palpites aqui, outros ali, mas no geral, tudo bem.
Mas se queres saber como ando de amores, vos digo: não ando. Estou mais sozinha do que jamais estive. Sozinha, sem amor. Sozinha de vontade de amar. Como bem disse um blogueiro esperto, o muro é muito alto e por enquanto só estou conseguindo sentar e olhar os tijolos que eu mesma coloquei ali.
Ando assim minha senhora, com um medo danado que a senhora volte para perto de mim. Por isso, atualizo-a da minha vida, para que mesmo de longe fiques sabendo como estou e não venha me assediar. Porque do jeito que me sinto, sou capaz de ceder.
Cordialmente e sem mais no momento.
Camilla Tebet

domingo, 13 de julho de 2008

Histórias no meio


Dizem que é assim, simples! Eu bem que me esforço. Acordo cedo. Passo cores no rosto, acarinho meus cabelos, sorrio para uma de mim no espelho. Escolho com cuidado o que cobrir meu corpo. É meu corpo, afinal. Alimento-me de verdes e brancos. Tenho todas as cores. As cores e o desespero. Tenho em mim a dor de não saber o que vem a seguir. E não me digam que todos têm essa dor. É em mim que corre quente o sangue amargo. Não quero explicações. Menos peço opiniões.


As histórias estão todas no meio. Não tenho tempo de acabar o livro de devolvê-lo à biblioteca. Estou sem carro, sem dinheiro. E as histórias estão no meio. Dia desses comecei a ouvir música clássica. Uma cor que estava tão perto e eu não notara. São musicas longas, de histórias que já chegaram ao fim. E a paz de histórias que têm fim me acalma. Minhas histórias ainda estão no meio. No meio! Você está entendendo? NO MEIO! Horrível estar no meio quando o tempo já passou. Eu deveria estar no meio há um tempo inteiro atrás. Minha vista anda embaçada. Histórias que estão no meio.


Minha mão escorrega todas canetas, o cigarro me enjoa e a luz nunca está certa. Fadas madrinhas, magos sedutores, gnomos mentirosos, deuses adúlteros, todos já me ligaram perguntando por minhas histórias. Agora pus o telefone no mudo. Não deixo mais tocar. Apago as mensagens sem ouvi-las. Vejo um homem quase loiro na rua e tenho muita vontade de chorar. Sei que das 9 as 18, meus dentes vão ranger de sorrisos. E que das 18 as 9 vão ranger tentando dormir.


E no fundo, no fundo queria que alguém me desse a mão.

Foto de CinnamonRed- deviantart

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Morro


Às vezes morro. Só um pouqinho, mas morro. Morro de sono e não durmo. Morro de fome e não durmo. Não durmo porque me dói morrer. O morrer consciente é daquele tipo de dor que desespera. Aquela dor que grita, berra, urra. E eu morro às vezes. Morro de dor. E a dor não tem depois. Dor é sempre agora, doer muito. Dor é certeza de que não vai passar. Dor é cor viva, é cor que escorre, que esbanja sangue,esbanja eu. Dor me desperdiça. E eu morro ás vezes. Morro de verdade. Não vou a lugar algum, porque morrer me deixa parada. Morrer me é pó. Sem gramática, morrer me é pó. Morro de fogo que destrói. Morro de água que afoga. Morro sem ar. Morro sem respirar e sem tocar. Morro. Às vezes.