segunda-feira, 16 de junho de 2008

A casa, a chuva e a carta




As roupas estavam penduradas no varal lá fora, no jardim da casa de lajota vermelha. Anunciava chuva. O céu escurecia. Um vento gelado batia nas flores das janelas que ainda estavam abertas. Eu estava sentada no escritório, na poltrona marrom que já tem alguns rasgos de histórias lidas e contadas. Estava absorvida pela carta que lia. Não conseguia tirar os olhos do papel. Eram duas páginas de uma história que um dia fora minha também.
As roupas começaram a “ventar” no varal. Eu podia ver da janela do escritório - que tem prateleiras de livros por quase todas as paredes. Livros muito meus. Mas não conseguia largar a carta para recolher a roupa no jardim que tem uma jabuticabeira e algumas muitas flores.
Esse jardim estava completamente abandonado quando mudei para essa casa, que agora é minha e tem uma cozinha amarela. Mas foi o que me atraiu. Fiz planos para hortas e muito mais. Acabei ficando com árvores, plantas e flores. O jardim verde me faz feliz. Tem uma rede azul cor de céu lá fora também. Mas estou aqui com a carta em minhas mãos olhando para a mesa antiga, que um dia fora do escritório do meu bisavô e hoje me serve de mesa de trabalho. Em cima dela, um notebook de última geração. O velho e o novo no escritório da minha casa que tem lajotas vermelhas e livros.
Se chover, vai molhar tudo. Mas o conteúdo da carta é tão sério que estou quase assustada. Estou nervosa, mesmo já tendo lido algumas vezes. Meus pés frios estão descalços sobre o tapete colorido de tear que comprei para o escritório, assim que mudei para essa casa, que como já disse, hoje é minha.
Ventania, dessas que só aqui na minha cidade pode-se ouvir o barulho. Ouço os vizinhos correndo para fechar as janelas e ouço portas batendo. Mas o começo da carta diz assim:

“É tanta saudade que fico acanhado só ao imaginar o tamanho que esta carta terá. Não quero tomar muito do seu tempo com minhas histórias, sei que você deve estar ocupada, como sempre esteve. Mas olhando para essas folhas em branco consigo ainda – apesar do tempo – ver seu sorriso largo e radiante, seus cabelos que espero ainda longos. Essa imagem me traz lágrimas e vontade de te contar tudo o que me aconteceu desde que te deixei”.

Bem, esse é apenas o começo da carta que o carteiro, que é meu conhecido, trouxe essa manhã junto com outras. Eu tinha acabado de coar o café no coador de pano quando ele tocou a campanhia. Chamei para tomar café comigo, o carteiro meu conhecido, antes mesmo de passar os olhos pelas cartas.
Minha cozinha é colorida. Amarela, como disse. O chão é ainda de lajota vermelha e as paredes são amarelas. As prateleiras são abertas, sem portas. Estavam assim quando eu cheguei e gostei da idéia. Lá coloquei toda minha louça colorida e meus livros de culinária. Comprei panelas novas só para enfeitar as prateleiras à mostra. A cozinha é ampla com uma pia de mármore branco que o ocupa uma parede toda e fica embaixo de uma janela bem grande. Adorei a casa à primeira vista, pois de todos os ambientes eu posso olhar o jardim através de grandes janelas.
O carteiro tomou o café comigo na cozinha onde a janela está aberta até agora e me entregou a carta, que só fui ver depois que ele se foi. Estranhei ao ver uma correspondência escrita à mão. Tudo hoje vem por e mail. E por incrível que pareça, não reconheci a letra dele. Foi só quando eu vi de onde vinha o selo é que percebi ser dele. Joguei todas as outras em cima da mesa de fórmica azul da cozinha e corri para o quarto.
O dia já estava começando a esfriar e eu descalço nas lajotas vermelhas do meu quarto com pé direito alto. Sentei à beira da cama de madeira antiga, na qual durmo. Essa cama deve ter uns cem anos e me apaixonei quando vi numa loja junto com um guarda-roupa ao mesmo estilo. À época eu já tinha uma cama, que já tinha sido nossa. Mas dei de presente e comprei essa, para recomeçar a vida dormindo em paz. Aqui faz frio e adoro edredons e colchas coloridas e quentes. O meu é vermelho e laranja para quebrar o escuro de tanta madeira.
Sentada na cama, hesitei antes de abrir a carta, lógico. Faz tanto tempo! Olhei no espelho da penteadeira e avistei, lá de longe, uma lágrima tímida. Olhei em volta do quarto, senti que o vento vinha da janela aberta e decidi que essa carta deveria ser lida na minha poltrona de leitura no escritório, onde leio meus livros, onde dou parte dos meus dias para ficção.
Agora, já na décima leitura da carta, paralisada, não consigo parar de pensar na chuva que vai cair. Mas a carta continua assim:

“Sei que você deve ter achando estranho eu não ter chorado na despedida. Mas me conhecesses bem, sabes que não e fácil para mim mostrar meus sentimentos. Saiba que logo que entrei no avião desabei de chorar o grande amor da minha vida que ficara para trás. Você sabe que sempre foi e ainda é meu amor, não sabe? Espero que nunca tenha duvidado disso, apesar de eu ter te deixado.
Chorei muito durante o vôo todo e muitos dias depois que cheguei aqui. Por isso te liguei tantas vezes. Pena que você já tinha se mudado e ainda não tinha telefone. Foi muito difícil recomeçar a vida sem você. Mas os dias, semanas, os meses foram passando e eu fui descobrindo caminhos que à época eu achava que me fariam feliz. Não deixei de chorar por você nem um dia sequer, mas decidi respeitar sua decisão de não querer mais falar comigo. Afinal, eu te deixei”.

Estava pela décima primeira vez nesse ponto da carta quando a chuva começou. Garoa, eu pensei. E nem se tentasse teria forças para fechar tudo. São muitas janelas. Um café já frio e muitos cigarros embalavam a leitura da carta e nada poderia interromper esse momento.

“Eu fui ficando apesar da certeza de que havia perdido você. Fui refazendo a minha vida. Alguns dos planos que te contei antes de vir eu consegui concretizar. Mas não o principal. Tenho uma pontinha de vergonha de te contar que não fiz o que vim fazer. Mas coisas legais foram aparecendo. Eu logo comecei a dar aulas. Acredita? Dei aulas aqui também. E me envolvi diretamente com a direção da escola. O que foi interessante para o período. O dinheiro era legal, o trabalho, desafiador e tudo isso me deixava um pouco menos triste por estar tão longe de você. Por que você não veio comigo? Eu te convidei tantas vezes.... Bom, o primeiro final de ano foi triste demais. Lembrei os Natais que tivemos juntos, do que poderíamos fazer se você estivesse aceitado o convite e vindo comigo. Você não veio”.

Quando cheguei nesse ponto da carta a chuva já estava caindo forte. Olhei para as roupas no varal do jardim e já estavam molhadas. O que me deixou mais calma, assim não precisava mesmo recolher. Continuei lendo, quase sem piscar, a carta que recebera hoje de manhã.

“Até entendo que você não tenha aceitado vir logo que eu vim. Mas poderia ter vindo depois. Tentei falar com você várias vezes, mas você não me atendeu. Sua mãe me disse que você não queria falar comigo. Só me restou sofrer e ver a neve cair, sozinho. Mas saiba que te comprei um presente naquele natal e guardo comigo até hoje.
Esse primeiro inverno eu passei totalmente envolvido com a escola. Mas em junho daquele ano, quando o verão já estava por aqui, decidi ir para o sul, trabalhar perto da praia. Sabe, você sempre teve razão, eu estava mesmo perdido, achando que a felicidade estava nos lugares e não em mim. E foi nesse verão que conheci a Claire. Demorei a assumir um relacionamento com ela, porque no meu coração ainda estava casado com você. Mas como você não aceitava nenhum contato e eu encontrei uma pessoa legal, as coisas acabaram rolando. Mas não foi tão simples assim, como te conto agora”.

Quando cheguei novamente nessa parte desnecessária da carta fui até a cozinha pegar mais café e limpar o cinzeiro. Troquei a xícara. Tenho uma coleção delas, todas muito coloridas. Nem reparei mais na chuva, só senti um cheiro bom, uma mistura de terra molhada e cafezinho quente. Voltei para minha poltrona e acendi mais um cigarro para continuar a leitura.

“Nós alugamos uma casa juntos perto do mar. E foi quase um ano de muitas aventuras boas e loucuras também. Trabalhei bem menos e com muito menos afinco. Saíamos todas as noites. Bebíamos muito. Você conhece o ritmo aqui. Mas logo me dei conta que aquilo não era mais para mim. Você sabe, eu vim em busca de mim mesmo, de amadurecimento e não de festa. O novo relacionamento também já não estava tão legal. Foi quando a Claire chegou com a surpresa: estava grávida. Bem, espero que você não esteja me odiando ainda mais ao ler essas coisas. Eu preciso te contar. Você sabe como sempre fui fascinado por crianças e por ter um filho. Aquela notícia me renovou os ânimos e decidimos tentar nos acertar.
Lembra que pouco antes de eu vir embora você me disse que eu logo encontraria alguém e teria um filho? Como você sabia? Você sempre teve isso de prever as coisas, principalmente comigo. O assunto filhos sempre foi motivo de muito desacordo entre nós, não é? Vai ver foi por isso que você previu.
Curtimos loucamente os primeiros três meses de gravidez. Montamos o quarto do bebê, compramos roupinhas. Eu estava realmente feliz com a idéia de ser pai”.

Acho que tomei muito café lendo a carta. Meu coração disparou. Corri ao banheiro e por um segundo pensei que fosse vomitar. Ajoelhei e tentei, mas não consegui. Levantei me segurando na prateleira de cimento vermelha e me olhei no espelho.
Quando mudei para cá o banheiro era horrível, o cômodo mais destruído da casa. Eu fiz as prateleiras e as pintei de vermelho. E para combinar pus um espelho de mosaico na parede. Coloquei também uma cortina que um amigo artista plástico pintou, com um peixe diferente, que nem parece peixe, no box. No fim, o banheiro ficara lindo.
Lavei o rosto, a ânsia de vômito passou e voltei à poltrona para terminar a carta.

“Mas infelizmente, com 13 semanas Claire perdeu o bebê. Fiquei muito abalado, nem sei como te contar o que senti. Não conseguimos passar por esse momento tão difícil juntos. Eu a deixei. Mais uma vez mudei de cidade. Na verdade eu nunca cheguei a amá-la, mas aquele filho sim, e fiquei sofrendo essa perda por muito tempo. Mais uma vez tentei entrar em contato com você e nada. Dois anos já haviam passado. Eu fiquei quase seis meses na casa do meu irmão até me recuperar e voltar à vida normal. Me chamaram na escola, fui me refazendo aos poucos.
Sabe, as viagens que fiz nesse período todo teriam sido lindas se eu as tivesse feito com você. Fui a lugares maravilhosos, alguns que você já conhece, outros não. E em todos eles, você estava no meu coração.
Minha amada sempre, agora já se vão três anos que parti e ainda é você quem vejo quando fecho os olhos. Não sei se você me perdoou, se um dia será capaz de me perdoar, só sei que não posso mais viver sem você. Sei que o que fiz talvez nunca tenha volta nem perdão. Mas serei infeliz para sempre se não tentar ter você de volta. Por isso, quando você estiver lendo essa carta, prepare-se que em mais ou menos uma semana eu estarei com minhas malas à sua porta.
Sua mãe não me deu mais notícias suas. Então não sei se estás casada, solteira, namorando. Mas vou arriscar me ajoelhar à sua frente, pedir perdão e espero que você, minha doce amada me aceite de volta.
Seu sempre.
Xxxx”

Dobrei as páginas, coloquei-as de volta dentro do envelope em cima da mesa. Pensei em tirar uma soneca na minha poltrona marrom de leitura, foi quando me lembrei da chuva. Mas aí já era tarde demais. Com todas as portas e janelas abertas a água molhou toda minha casa. Fui ao jardim tirar as roupas do varal e acabei me ensopando também. Minha casa está molhada e eu também, mas te digo: o cheiro de chuva está uma delícia.
Photo by randehay

12 comentários:

Carolina Sperb disse...

me vejo lendo uma carta assim.
sabe, querida, sinto-me contigo nesses momentos.
carta linda, cheia de sentimentos puros e verdadeiros. mas tardios. o cheiro da chuva é uma delícia. o do café também. aliás, amo café. estes são prazeres eternos, que jamais nos trairam e que estão sempre ao nosso dispor. abrir um coração lacrado e maciço é algo difícil. prefiro chuva, café, cigarros e cartas.

beijos com carinho, querida.
cuide-se

Beto Mathos disse...

Como uma amiga comentou em meu blog dia desses: "Ainda sob impacto aqui. Alguém anotou a placa?"
Lindo, lindo, lindo!
Beijos pra vc!

Assim que sou disse...

Nada como uma chuva para levar o que carregamos além da conta. Vão-se os pedaços e ficam apenas as marcas. Que são sinais, são história, são lembrança....mas só sinais, história e lembrança.
Bom voltar a te ler. Bom demais ler-te em meu blog com palavras tão doces.

bjs. Veronica

Anônimo disse...

A foto é tão perfeita, e o texto também, que consigo ver as roupas no varal!




Abraços, flores, estrelas..

Anônimo disse...

Ah... esqueci de dizer: também tomo groselha.

Agora mesmo, estou tomando groselha com leite... deliciosamente!

Cla disse...

Como disseram,não dá pra passar por aqui e ficar imune.
Parabéns pelo texto que corre e flui e pela coragem,que nem todos tem quando escrevem.

Jaqueline Lima disse...

O passado é presente. mas abastrato. afinal são lembranças que tomam vida e forma. me encontrei com um amor antigo. e foi ótimo poder voltar. acho que depois de um grande amor a gente nunca mais se apaixona por mais ninguém mesmo. e se alguém realmente se dá conta de que ama. ahhh,perdões dados e portas abertas!

bjooo

Anônimo disse...

boa tarde! gosto muito do seu blog! sou adm. do blog “o fogo anda comigo”(thefirewalkswithme.blogspot.com). o blog tem como ideal um SARAU AMPLIFICADO onde TODOS divulgam suas ideias e, o principal, poemas. gostaria de ser um parceiro seu! me responda no email ofogoandacomigo@yahoo.com.br. OBRIGADO

Beto Mathos disse...

Eu já sou seu fã...
Beijo e obrigado pelo carinho.

Anônimo disse...

Knowing you as well as i do, I know how much of yourself you give to what you write and I respect that. Besides your undoubted gift I admire the bravery and courage in what you say. Congratulations and I'm sure by following your heart you'll have all the success you deserve.

Narradora disse...

Gosto desse estilo de texto, bem visual, dá pra acompanhar a moça andando pelos cômodos da casa, olhando o jardim, lendo a carta - parece meio filme. Eu realmente gosto de ver o que eu leio.
A cadência, a forma com que você vai pra casa, volta pra carta, fala da chuva...
Engraçado, que apesar de todas as nossas certezas, nada na vida é tão definitivo.
Adorei o texto.
Bjs

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom