quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O telefone, as formigas e o chapéu


O bar era brega, e escuro, mas e daí? Há quanto tempo não saia de casa? Há quanto tempo estava escondida atrás da cortina imaginária, de tecido, velha e fedida. Há quanto tempo os cinzeiros estavam sujos, a pia lotada e a geladeira vazia? Hora de sair e não de pensar em quanto tempo. Uma amiga, querida amiga, mas que já não tinha nada mais a ver com a vida dela, tinha ligado. Pela primeira vez em muito tempo atendera ao telefone.
- Alô.
- É você mesmo? Atendeu? Não acredito. Pensei que tivesse morrido ou mudado de país e esquecido de avisar.
- Não, sou eu mesmo, fala.
- Estou indo num bar novo, que inaugurou na Vila semana passada, não quer ir? Vai estar legal.
-Vou.
Aceitou por aceitar, para brecar uma roda que estava girando há semanas. Para respirar, mesmo que fosse à idéia de ir. Mesmo que não fosse ao bar de verdade.
- Que bom que topou, passo aí às dez ta?
- Ta.
E desligou o telefone sem se despedir. Já que a amiga queria sair com ela, sairia, mas ser gentil naquele momento não ia dar. Continuou sentada no sofá pensando em como faria para sair de casa. Que roupa colocaria, que sapato, que cabelo, que unhas, que cara? Com que cara ia sair de casa? Mas iria, estava certa de que iria. Já eram oito da noite. Alguma coisa tinha que ser feita se quisesse estar pronta as dez. Do jeito que o apartamento estava não conseguiria chegar ao quarto as dez para se arrumar. Tudo, mas tudo mesmo que possuía estava no chão. Não sabe como, mas até seus livros foram para o chão. As formigas estavam lá há dias. Sempre gostara de formigas, desde a infância, talvez por isso não tivesse se incomodado em limpar nada. Não, não era só por isso, lógico que não. Se gosta tanto assim de formigas, poderia colecioná-las numa latinha e não transformar a casa num chiqueiro para que elas viessem. As coisas estavam assim porque estavam assim.
Acendeu a luminária do lado do sofá. A lâmpada ainda funcionava, o que lhe deu um certo ânimo. Algo funcionava. Olhou para a luz por alguns minutos. Imaginou tantas coisas. Imaginou tantas casas, tantas vidas, tantas noites, tantos planos que até saiu do lugar. Levantou-se e foi pulando o resto dos dias que estava no chão. Foi ao banheiro e ali, com menos sorte, a lâmpada não funcionava. Olhou-se no espelho escuro e agradeceu a lâmpada que não acendia. Parecia cinza ou era a falta de luz? Parecia outra. Parecia alguém que não via há muito tempo. Parecia alguém que parara há muitas estações da dela. O chuveiro ainda funcionava. E foi só quando tirou a roupa que percebeu o quanto fedia. Há quantos dias não tomava banho? Muitos. Entrou embaixo da água e abriu a boca, rindo como uma doida que ri da água. Riu que se matou. Riu tanto que engasgou com a água que caia. Não sabia do que ria. Talvez do banho, talvez do cheiro que ia embora ralo abaixo com ela. Ria. Ficou uma hora se molhando. Sem sabonete, xampu ou condicionador. Alguém disse a ela uma vez que a água lava tudo. E lava. Saiu molhada pela casa em busca de uma toalha. Busca inútil, nada limpo. Secou-se com uma toalha suja mesmo.
A risada tinha lhe feito bem. Estava agora disposta a encontrar uma roupa e se arrumar para ir ao bar com uma amiga. Abriu o guarda roupa e surpresa: só formigas. Como aquelas formigas tinham tomado conta da casa? Ela cumprimentou a todas, uma por uma que via e pediu licença para achar uma roupa. Achou: uma calça vermelha, uma blusa xadrez e um tênis branco. Simples, a cara dela, e a única coisa usável que vira. Vestira-se rápido. Decidiu não usar meias. Sempre tivera os pés frios, mesmo dentro das meias. E ficava com mais raiva ainda quando saia de meia esperando não sentir frio e sentia. Para que meias, então? E o cabelo, o que faria com o cabelo? Tentou passar o pente, inútil, o cabelo estava todo embaraçado e não achou um pote de creme pela casa. Decidiu prender de qualquer maneira e procurar por um chapéu. Há muitos anos atrás sua avó lhe dera um chapéu vermelho, sabe-se deus por que, mas se achasse ficaria legal. Abriu novamente o guarda-roupas, pediu licença ás formigas e pegou o chapéu vermelho, que estava à vista. De chapéu foi ao banheiro pedindo por uma pasta de dentes, e encontrou. Escovou os dentes e sentou como uma mocinha que espera a carona no sofá da sala. Sentia-se bem. Tinha conseguido se arrumar e uma amiga viria buscá-la para sair. Esperou um tanto que não achava normal. Parecia que estava pronta, vestida, esperando há horas e na verdade esperara apenas meia hora. Interfone, porteiro avisando que amiga chegara. “Sempre pontual”, pensou. “Eu que estava adiantada”. No elevador estranhou primeiro o espelho, onde se via no claro, estranhou também o elevador. Há muito tempo que não se via ou ao elevador. Mas gostou do que viu e desceu. Passou pela portaria sem olhar o porteiro ou dizer boa noite. Estava assim, com poucas palavras disponíveis e pouca vontade de se comunicar. Desceu as escadas e viu o carro que parecia ser o da amiga. Entrou e falou.
-OI. A amiga olhou para ela, abraçou-a e disse:
- Você tem certeza que está bem para ir a um bar?
- Lógico, por que não?
- E tem certeza que vai com esse chapéu?
-Lógico por que não? A amiga era amiga mesmo apesar de não ser mais amiga. Tivera a coragem de levá-la mesmo com o chapéu. Dirigiu em silêncio. E ela também em silêncio. Até pensou em dizer alguma coisa, mas nada lhe vinha à cabeça com o chapéu. Quando chegaram em frente ao bar disse à amiga:
-Obrigado por me trazer. E ganhou mais um abraço.
- Por que está me abraçando tanto? A amiga sorriu e as duas desceram do carro. Logo na entrada do bar, notou que todos olhavam para ela. Imaginou ser o chapéu, mas não deu bola. Estava num bar. Há quanto tempo não fazia isso. Não sabia se estava feliz por estar ali, era apenas uma questão de “há quanto tempo”. Sentaram-se numa mesa e amiga pediu uma bebida. Ela estava com fome, muita fome, e mal se lembrava disso.
- Eu quero um sanduíche qualquer e uma bebida qualquer.
A amiga pegou o cardápio e escolheu para ela. O bar era feio e brega, mas estava lá. Logo chegaram os amigos da amiga, que sentaram perto dela. Ela já tinha acabado de comer e bebido o suco que a amiga pedira. Estava satisfeita. Cumprimentara os amigos oferecendo-lhes a mão, o que causara algumas risadas. Não estava ali para beijar ninguém. Prestou atenção na conversa de todos. Estava tendo um bom momento. Podia dizer que tinha se divertido. Um amigo da amiga virou-se para ela e perguntou:
- Você percebeu que sua blusa está cheia de formigas?
- E o que tem as formigas?
- Nada, disse o rapaz encabulado. Ficou brava. O que esse estranho tinha a ver com as formigas delas. Algumas pessoas saem com cachorros, outras com gato, outras até com passarinhos no ombro, e qual o mal de sair com formigas? Decidiu que queria ir embora. Disse à amiga que tomaria um táxi. A amiga disse que a levaria e ela se levantou. Tudo escureceu. Quando acordou estava deitada no sofá de casa. O telefone tocando. Era a amiga:
- Alo.
- É você mesmo? Atendeu? Não acredito. Pensei que tivesse morrido ou mudado de país e esquecido de avisar.
- Não, sou eu mesmo, fala.
- Estou indo num bar novo, que inaugurou na Vila semana passada, não quer ir? Vai estar legal.
-Hoje não, já fui ontem.

25 comentários:

Anônimo disse...

Incendiario , pure arson...e crime te ler e nao querer! entre ser igual ou estar longe de voce ha uma linha bem fina...parabens

Friendlyone disse...

É de impressionar as coisas que você escreve!

As suas formigas me lembraram As formigas de Ligia Fagundes Telles. E elas fazem seu próprio caminho, assim como sua personagem. Quando algo as incomoda, elas contornam, dão um jeito. Sua personagem foi embora. E o final, interessantíssimo, assim como os finais de todos os teus contos, sempre me deixando a pensar!

Anônimo disse...

Inacreditável seu acesso às palavras. Elas vão tomando forma, ocupando espaço, e como formigas vão circulando diante de nossos olhos, encantando nossa mente. Essa imagem da menina de chapéu vermelho parece voce, despojada, fazendo o que te dá na telha, vestindo, usando, sendo o que quiser.
E, melhor prá nós, escrevendo , escrevendo, despejando sensações, toques, aproximação, chamando a gente prá dentro do teu conto.
E, seus contos, serão a partir de hoje meu "quentinho".
Parabéns, menina e não pare nunca de escrever, pois mesmo se voce não conseguir escrever muito bem um dia, v. nunca escreverá mal.
Keep going....

Anônimo disse...

Você tem um jeito delicioso de escrever diálogos!

Flui.



Flores e estrelas..

João Neto disse...

Um dia aborrecido após o outro. Cansaço e vontade de nunca mais fazer nada. Quem não teve momentos assim que atire as primeiras formigas. Sorte termos amigos (mesmo quando não os vemos, mas apenas lemos seus deliciosos contos).

Bjos.

Anônimo disse...

Este conto me trouxe uma certa tristeza, algo que estava escondido apareceu assim, do nada, ou talvez já estivesse bem à minha vista e eu não tivesse observado... sei lá! Identificação com personagens é uma coisa muito doída!

O que escreves, amiga, chega de sopetão e se aloja dentro de mim. Nem saberia dizer bem o porquê. É como se as tuas palavras estivessem procurando um lugar para ficar e ao me encontrar se sentissem em casa...

Muito doido isto tudo... desculpe, meu anjo, mas estou num mau momento e talvez não esteja dizendo coisa com coisa (rs).

Mesmo assim te deixo um raio de sol enfeitando o teu dia, o sorriso de um lindo anjo brincando na tua alma, uma estrela para o teu sonhar, e um beijo do meu para o teu coração.

Victor S. Gomez disse...

Sua narrativa é muito boa. E o final deixa-nos pensar em como poderá ser. Você já tem algum livro publicado? Abraços

aluaeasestrelas disse...

Hahahahahahahah... Surpreendente. Vc costurou com perfeição a história e o final foi fantástico. Mas a história em si, no meio de tantas formigas e coisas perdidas no espaço entre o real e imaginário, me fez pensar: apesar da bagunça, sempre há algo que funciona.
Adorei!!!

Bjos e ótimo final de semana!

Vivian disse...

...aiminhanossasenhoraaaaa!
agora eu tô vendo fantasmas
que há algum tempo já me encantaram
a alma...

o que é bom não pode ficar embolorando nas gavetas por aí...

tão delicioso voltar a ver o bailado das formigas nos
instigando a pensar...

te amo, Camilla
te amo muito, menina das letras
surpreendentes...

muahhhhhhhhh

gab disse...

é camilla...por isso eu saí(tentar brecar)...mas é como uma sorte,essa vontade.

aliás...preciso de um chapéu novo...

=)

gab disse...

aliás(2)...não q tenha algo a ver(pq a gente se veste um pouco com as coisas dos outros)

=*

Narradora disse...

Muito legal a narrativa, a construção, o fim... gostei da idéia das formigas, da imagem, gosto de "texto-visual", gosto de enxergar...rs
Tô usando muito "gosto", mas eu gosto mesmo de como você escreve.
Bjs

Anônimo disse...

às vezes somos assim mesmo, não? deixando a própria vida uma bagunça, criando insetos ao nosso redor e até os alimentando, amando tudo isso, como a própria vida. e até nos perguntamos: por que não?

beijinhos, menina. você me faz pensar... sempre... ;)

Cla disse...

Camila
Como as estações do ano,as da gente,as do poema de Cecilia,que valem ser respeitadas,vale a gente respeitar a gente mas tb não vale ficar 'escondido fazendo fita',como diria Cazuza,pelo menos não sempre!hehe
Muito obg pelos elogios,pela visita e pelo parabéns! =)
bjo

Anônimo disse...

Li três vezes esse seu texto, e três vezes me perguntei: "como ela consegue escrever esse tipo de coisa?". Bjus e parabéns pelo texto!

http://so-pensando.blogspot.com

DBorges disse...

Sair é uma boa ação.

=]

Fernanda disse...

Preciso de um chapéu vermelho!

bjs

Anônimo disse...

passando, relendo, partindo... mas deixando um sorriso para enfeitar o teu domingo.

Lua em Libra disse...

Camilla !!
Que bárbaro, este conto. Sem palavras, aqui. Espera, vou pedir licença às minhas formigas e ir até lá reler e ler muitas coisas mais. Adorei. Beijos.

Janaina disse...

Lendo isso, só me lembrava da Paixão Segundo GH. Não é comparação. É só um elogio, porque a Clarice Lispector é minha preferida entre as mulheres.
Adorei, adorei.
Beijos!

Letícia disse...

Eu vi tudo. Já vivi um dia assim e gosto de formigas e tenho amiga que já não é mais amiga e já andei em bares bregas e sem sentido algum.
Ótimo texto, Camilla.
Leio com vontade.
Bjs.

Assim que sou disse...

Li numa sequência só os três últimos posts. Mas comecei com o das formigas. Devia tê-lo feito de baixo para cima. Quando reli todos, a partir de uma ótica que construi junto à leitura do terceiro post, pude ver tudo com outro olhar. Um olhar absolutamente pessoal, sem nenhum compromisso com a verdade. Se é que existe verdade! Mas, não...há verdade em tudo sempre, mesmo que contemos nossa história em versos tortos ou alegorias obscuras.
Não há caminho novo sem considerarmos os que já traçamos, inclusive literalmente.
Te lendo hoje, cercada ou não das formigas, percebi que teu olhar está bem longe. E esse longe também pode ser no sentido de ver melhor.

Saudades dos teus textos....sempre instigantes. bjs. Veronica

Anônimo disse...

Que magia é esta, amiga, em que nos prende para começar a ler os teus escritos, e só nos solta ao término deles...? que magia é esta além da beleza, clareza, objetividade, delicadeza, e todos os bons adjetivos que possam qualificar os teus textos e que nos mantém cativos na leitura do princípio ao fim, além até da poesia que neles tu imprimes...? Que magia é esta, te pergunto, como a personagem indagou várias vezes "quem eram as mulheres que ela queria ser?" Uma história que comove, que ternuriza, que nos faz participar da pressa e das descobertas da personagem... Tão intenso, tão verdadeiro, tão (in)comum o encontro dela com esta mulher, que de tão enraizada que estava nela, ainda não se tinha dado conta de que já a encontrara... Olha, amiga, sempre que termino de ler uma de tuas histórias (ou conto) eu fico imaginando que foi a melhor que já li da tua safra, mas me surpreendo cada vez mais a cada postagem que leio. Parabéns, mais uma vez!

Te deixo um sorriso, uma flor, uma estrela, e um beijo no coração.

Anônimo disse...

hello,

the pic you uploaded here "on the road" is my pic I took it.. and you uploaded it here without my permission. without any written permission from me.. you didnt even credit it back to me. it's really upsetting.

I would really appreciate it if you could please remove this picture from your blog.. thank you for your co-operation

Thank You - hansheeda

Camilla Tebet disse...
Este comentário foi removido pelo autor.