terça-feira, 25 de novembro de 2008

Cada um tem o que merece


"Cada um tem o que merece”. Estava na outra mesa, mas não pude deixar de ouvir a frase, que ficou ecoando na superfície dos meus pensamentos por todo o dia. Foi um dia comum, de trabalho estranho, de refeições planejadas, de amores indecisos. Hora de ir para casa, entrei no carro, liguei o ar e a música, eu não ouvia. Ouvia apenas: “cada um tem o que merece”. Dirigi um longo caminho para casa, o trânsito estava ruim, o céu, cruel de cinza ameaçava derramar muita água e apesar de estar no caminho, não estava com vontade de ir para casa. Não, cada um tem o que merece, não posso ir para casa. Sempre me perco nos caminhos de São Paulo e seria bom se hoje isso acontecesse. Eu me perdesse. Afinal, cada um tem o que merece. Mas não me perdi. Sabia direitinho como chegar em casa. Tinha escolhido um caminho já decorado desde minha reestréia na cidade. Mas como cada um tem o que merece eu decidi que merecia ir pra onde quisesse, e não era pra casa. Virei a primeira rua que parecia sem trânsito. Se não tinha trânsito numa hora de rush daquelas ou era sem saída ou ninguém queria ir pra lá. E como cada um tem o que merece, eu queria. Rua estreita, mas logo vi que tinha saída. Escura, nem parecia estar dentro de São Paulo. Na verdade, uma rua estranha. Mas era ali que precisava estar, numa rua estranha, com paralelepípedos quebrados, luz fraca e casas pequenas. Estacionei e acendi um cigarro. E se fosse assaltada? Bem, cada um tem o que merece, então fumaria meu cigarro, sossegada, sem medo de ser assaltada. E talvez se um assaltante chegasse, eu o beijasse, pedisse que me comesse e passasse a noite comigo.E como cada um tem o que merece talvez até o levasse para tomar um vinho. Asneira. Não fui assaltada. Liguei o carro e fui em frente, sem saber pra onde. Quando me dei conta, estava na Vinte e Três de Maio parada. É assim, quando você menos espera, está engarrafada de novo. Milhares de luzes vermelhas à sua frente, todos indo para o mesmo caminho que você. Mas talvez naquela hora ficar parada no trânsito no sentido inverso ao da minha casa fosse bom pra mim, me daria tempo para pensar em onde ir. Não iria para casa. Que me esperasse, cada um tem o que merece. O rádio continuava repetitivo, os carros ao lado, todos com janelas fechadas e provavelmente blindados. São Paulo tem muito medo. Nem sei mais se o medo é das pessoas ou se cristalizou tanto que virou o medo da cidade. Conhece uma cidade que tem medo? São Paulo em si, enquanto cidade tem medo. Mas como naquela noite eu tinha certeza de que cada um tem o que merece, eu não tinha medo. Faltavam-me idéias de pra onde ir. Não queria ligar pra ninguém, convidar ninguém para nada. Queria ir sozinha pra viagem que só eu mereço fazer. Que seja merecimento ou punição: cada um tem o seu e cada um sabe-se seu. Enquanto o trânsito estava parado resolvo roer o resto de esmalte que estava nas minhas unhas. Essa semana decidi passar roxo. Queria vibrar uma cor nova, queria irradiar alguma novidade. O roxo não ajudou, então aproveitei o nada fazer para roer a cor das unhas, roia e cuspia, uma delícia, mas sei ser um espetáculo nojento para quem olha. Nesse cuspir de unhas foi me dando vontade de chorar, aquele trânsito que parecia infinito estava me dando claustrofobia. Com certeza não só em mim. Como disse, São Paulo tem medo e São Paulo sofre. A gastronomia é maravilhosa, as opções e cultura infinitas, de compras, de lazer, tudo de primeiro mundo. Mas São Paulo tem medo e São Paulo sofre, e muito. Mas como disseram hoje de manha no Frans Café da Paulista e eu ouvi de enxerida que sou: cada um tem o que merece. Consegui vencer o trânsito com paciência espartana. Fui brava, corajosa, respirei fundo, abri as janelas sem medo e tomei ar pra mim. Ar frio e com medo, mas enchi os pulmões para decidir onde iria. Decidido: ouvi dizer que o Ibirapuera tem passeios noturnos. Um pouco de natureza não me faria nada mal. Republica do Líbano e lá estava eu. Estacionei o carro e como ainda eram 7 e pouco da noite, vi muita gente caminhando, correndo, buscando a parte saudável do dia. Desci com medo. Agora sim estava com medo. Tinha decidido onde iria e cada um tem o que merece. Entrei no parque e comprei uma pipoca que não comi. Senti nojo e joguei na primeira lixeira que vi pela frente. Andei, andei, andei, quase uma hora, quase até minhas pernas doerem de andar. Estou fora de forma, triste lembrar. Ando fumando demais, bebendo demais e me exercitando de menos. Mas andar estava bom. Encontraria alguém ou alguma coisa que mereço e para ter certeza de que isso aconteceria deixei o celular no carro. Nada me atrapalharia na minha busca pelo que mereço. Sentei num banco. Fui relaxando, relaxando, coloquei a bolsa ao lado e me deitei. Sim, o que tem demais deitar num banco do Ibirapuera? Deitei e peguei no sono. Acredita: cada um pega no sono onde merece. Eu peguei no sono dentro do parque do Ibirapuera. Sono pesado e sonhei. Não, não vou contar o sonho. Ah, será que conto? Não foi tão legal assim, cada um tem o sonho que merece.


19 comentários:

Anônimo disse...

Um texto que nos faz refletir sobre aquilo que estamos fazendo com nossa vida, os caminhos que estamos palmilhando, as decisões que temos tomado. De alguma forma, lá no fundo, sabemos que realmente somos aquilo que nós mesmos criamos à nossa volta e que temos mesmo aquilo que fazemos por merecer.

Fica o desejo de um dia ensolarado de alegrias e um beijo no coração.

Letícia disse...

Devo estar bem então, porque já dou de cara com um texto deste logo de manhã. Tenho o que mereço e você fez um desastre perfeito quando falou que "São Paulo tem medo". Fiquei aqui com a imagem da cidade cinza de Ibirapueras cheia de medo. Tive uma imagem surrealista de imediato. E quando você falou do assaltante e de uma possível relação sexual com ele, sim, seu texto é o que merece. Bom, grande, ressacado e imoral. Tudo o que uma mulher que escreve precisa ter em mãos e em mente. Você tem o talento e merece. E admiro, Camilla.

Beijos.

Letícia

Germano Viana Xavier disse...

E a Tebet muda da água para o vinho, ou vice-versa. Não é mais texto surreal-simbolista. Agora é crônica encharcada de realidade. E eu imaginei ruas e carros e meninos e muitos e muitos. Um dia ainda ando pelas ruas de São Paulo e trago um livro pronto de lá.

Você alimenta almas, Tebet.

Carinho.
Continuemos...

gabi mo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Calu Baroncelli disse...

Ah se assim fosse, não sofreríamos das dores que nunca queremos sofrer...
prefiro pensar na experiência.
merecimento me lembra trabalho e sacrifício... e dor.
Fico com as energias.
La vie en close...

Adriana Gehlen disse...

eu odeio essa frase, não tem nada a ver.

ótimo texto.

Jaqueline Lima disse...

apesar de São Paulo ter medo. vivi. assim. porque cada um. e cada lugar tem o que merece. e você deixou esse texto brilhante. de tão bem colocado. assim. porque cada um tem o que faz por merecer. aí acaba merecendo mesmo. reflexo das atitudes. absorve os resultados.

Beijos!

Anônimo disse...

E uma frase muda todo um caminho.

Camila disse...

O texto é longo e não parece. Fui lendo e, quando vi, já ja acabou. Porque eu também pinto as unhas com cores diferentes só pra ver se ajuda em alguma coisa (eu li isso em alguma revista feminina, e não, não me ajuda em nada). Eu também, às vezes, não tenho vontade de voltar pra casa, mas, mais cedo ou mais tarde, volto. E também deixo meu celular de lado, nem sempre quero ser encontrada, sobretudo quando não estou me encontrando.

Adorei vir ler você. Você é real.

Beijos, Camilla!

Cleyton Cabral disse...

Eu gostei daqui e quero voltar mais vezes. =D

Cla disse...

'cada um tem o seu,e cada um sabe-se seu'
Gostei.Nessa loucura dessa cidade tua aí imensa,tão diferente da minha,é saudável questionar,é saudável,por mais paradoxal que seja,enlouquecer e decidir não seguir o planejado.Que continue assim,Camila,a viver o planejado e o não planejado,e a escrever isso aqui,pra deleite dos seus leitores!hehe
Clarissa

Narradora disse...

Senti falta de te ler. Gosto das varaições, das muitas camillas.
Bjs

Assim que sou disse...

Camilla,

Prá começar, vou dizer de saudade. Dei uma sumida das palavras e das leituras dos blogues. Mas deixar de ler seus textos me faz falta. Tenho convicção de que não é porque mereço. Já te disse em algum dos meus textos que acredito realmente que só existimos para transformar, para evoluir, para construir. Embora sejamos também agentes de tanta destruição e involução. Mas somos vocacionados para seguir adiante e näo há merecimento nisso. Há só o uso-fruto de nossas infindas possibilidades. Como a de transformar engarrafamento caótico em prosa, como a de fazer de um fim de tarde em São Paulo a ousadia da transgressão.
Nós merecemos tudo e não estamos fazendo nada diferente do que buscar. As palavras têm sido uma escada poderosa para essa conquista. Às vezes subimos, às vezes descemos para o mundo de Alice.

Beijos. Veronica

Anônimo disse...

Cada vez me impressiono com você sabia? De contos sureais a crônicas... Bjus.

http://so-pensando.blogspot.com

:.tossan® disse...

Muito legal o seu texto! Cada um tem o que merece, eu adoro este tipo de música. Eu mereço um belo texto e uma boa música. Obrigado. Bj

Rany disse...

pensamentos, pensamentos...
é incrivel como silmples palavras nos fazem tomar decisões...
adorei seu texto e o cotexto!

me encantei...
parabéns, bela postagem!

JULIANA disse...

Não acredito!!!! que vc dormiu no parque! "Seu guarda eu não sou delinquente eu não sou vagabundo, sou um cara carente... eu dormi no parque... pensando nele..."
Vc tá morando aqui cabeçao??? amei esse texto! aqui vai mais um http://inimigopago.blogspot.com/

Gui disse...

Naquele dia, você merecia não ser assaltada ou será que o ladrão merecia alguém com um celular? Será que você não merecia um estuprador ou o estuprador merecia a gostosa que estava deitada no banco do outro lado da praça?

Eu sou fã dessa frase, mas tenho algumas ressalvas... quanto a "morte". Será que merecemos a morte? Ou a morte de alguém próximo? Algo que não é questão de merecimento, mas que invariavelmente acontece, mais cedo ou mais tarde... Parece meio definitivo isso, mas cá entre nós: merecendo ou não, a morte SEMPRE teremos. Ou será que seria melhor "todos merecemos morrer"? Pelo menos não contradiz a famosa frase que "Cada um tem o que merece".

Agora se você merece uma morte lenta e dolorosa ou uma morte rápida e certeira... Apodrecer numa UTI, ficar aleijado por um longo período e morrer por um motivo besta, ou agonizar numa estrada deserta sem ninguém para te socorrer após um acidente de transito, no qual você ficou preso nas ferragens... enfim, nessas alturas, certamente se tem inúmeros merecimentos.......

Merecemos a morte de um ente querido em um momento de felicidade da vida, de alegrias... ou merecemos a morte em um momento em que estamos passando dificuldades, no qual afundaremos de vez...

bem, cada um tem o que merece.

"No fim, tudo sempre dá certo". Fato é, que, quando morremos, as coisas deram certo.

Nice Coutinho disse...

Tenho a mania de falar esta frase,"Cada um tem o que merece", mas é uma grande realidade, mas nem sempre merecemos coisas boas, falo no sentido de plantamos o que colhemos.