O bar era brega, e escuro, mas e daí? Há quanto tempo não saia de casa? Há quanto tempo estava escondida atrás da cortina imaginária, de tecido, velha e fedida. Há quanto tempo os cinzeiros estavam sujos, a pia lotada e a geladeira vazia? Hora de sair e não de pensar em quanto tempo. Uma amiga, querida amiga, mas que já não tinha nada mais a ver com a vida dela, tinha ligado. Pela primeira vez em muito tempo atendera ao telefone.
- Alô.
- É você mesmo? Atendeu? Não acredito. Pensei que tivesse morrido ou mudado de país e esquecido de avisar.
- Não, sou eu mesmo, fala.
- Estou indo num bar novo, que inaugurou na Vila semana passada, não quer ir? Vai estar legal.
-Vou.
Aceitou por aceitar, para brecar uma roda que estava girando há semanas. Para respirar, mesmo que fosse à idéia de ir. Mesmo que não fosse ao bar de verdade.
- Que bom que topou, passo aí às dez ta?
- Ta.
E desligou o telefone sem se despedir. Já que a amiga queria sair com ela, sairia, mas ser gentil naquele momento não ia dar. Continuou sentada no sofá pensando em como faria para sair de casa. Que roupa colocaria, que sapato, que cabelo, que unhas, que cara? Com que cara ia sair de casa? Mas iria, estava certa de que iria. Já eram oito da noite. Alguma coisa tinha que ser feita se quisesse estar pronta as dez. Do jeito que o apartamento estava não conseguiria chegar ao quarto as dez para se arrumar. Tudo, mas tudo mesmo que possuía estava no chão. Não sabe como, mas até seus livros foram para o chão. As formigas estavam lá há dias. Sempre gostara de formigas, desde a infância, talvez por isso não tivesse se incomodado em limpar nada. Não, não era só por isso, lógico que não. Se gosta tanto assim de formigas, poderia colecioná-las numa latinha e não transformar a casa num chiqueiro para que elas viessem. As coisas estavam assim porque estavam assim.
Acendeu a luminária do lado do sofá. A lâmpada ainda funcionava, o que lhe deu um certo ânimo. Algo funcionava. Olhou para a luz por alguns minutos. Imaginou tantas coisas. Imaginou tantas casas, tantas vidas, tantas noites, tantos planos que até saiu do lugar. Levantou-se e foi pulando o resto dos dias que estava no chão. Foi ao banheiro e ali, com menos sorte, a lâmpada não funcionava. Olhou-se no espelho escuro e agradeceu a lâmpada que não acendia. Parecia cinza ou era a falta de luz? Parecia outra. Parecia alguém que não via há muito tempo. Parecia alguém que parara há muitas estações da dela. O chuveiro ainda funcionava. E foi só quando tirou a roupa que percebeu o quanto fedia. Há quantos dias não tomava banho? Muitos. Entrou embaixo da água e abriu a boca, rindo como uma doida que ri da água. Riu que se matou. Riu tanto que engasgou com a água que caia. Não sabia do que ria. Talvez do banho, talvez do cheiro que ia embora ralo abaixo com ela. Ria. Ficou uma hora se molhando. Sem sabonete, xampu ou condicionador. Alguém disse a ela uma vez que a água lava tudo. E lava. Saiu molhada pela casa em busca de uma toalha. Busca inútil, nada limpo. Secou-se com uma toalha suja mesmo.
A risada tinha lhe feito bem. Estava agora disposta a encontrar uma roupa e se arrumar para ir ao bar com uma amiga. Abriu o guarda roupa e surpresa: só formigas. Como aquelas formigas tinham tomado conta da casa? Ela cumprimentou a todas, uma por uma que via e pediu licença para achar uma roupa. Achou: uma calça vermelha, uma blusa xadrez e um tênis branco. Simples, a cara dela, e a única coisa usável que vira. Vestira-se rápido. Decidiu não usar meias. Sempre tivera os pés frios, mesmo dentro das meias. E ficava com mais raiva ainda quando saia de meia esperando não sentir frio e sentia. Para que meias, então? E o cabelo, o que faria com o cabelo? Tentou passar o pente, inútil, o cabelo estava todo embaraçado e não achou um pote de creme pela casa. Decidiu prender de qualquer maneira e procurar por um chapéu. Há muitos anos atrás sua avó lhe dera um chapéu vermelho, sabe-se deus por que, mas se achasse ficaria legal. Abriu novamente o guarda-roupas, pediu licença ás formigas e pegou o chapéu vermelho, que estava à vista. De chapéu foi ao banheiro pedindo por uma pasta de dentes, e encontrou. Escovou os dentes e sentou como uma mocinha que espera a carona no sofá da sala. Sentia-se bem. Tinha conseguido se arrumar e uma amiga viria buscá-la para sair. Esperou um tanto que não achava normal. Parecia que estava pronta, vestida, esperando há horas e na verdade esperara apenas meia hora. Interfone, porteiro avisando que amiga chegara. “Sempre pontual”, pensou. “Eu que estava adiantada”. No elevador estranhou primeiro o espelho, onde se via no claro, estranhou também o elevador. Há muito tempo que não se via ou ao elevador. Mas gostou do que viu e desceu. Passou pela portaria sem olhar o porteiro ou dizer boa noite. Estava assim, com poucas palavras disponíveis e pouca vontade de se comunicar. Desceu as escadas e viu o carro que parecia ser o da amiga. Entrou e falou.
-OI. A amiga olhou para ela, abraçou-a e disse:
- Você tem certeza que está bem para ir a um bar?
- Lógico, por que não?
- E tem certeza que vai com esse chapéu?
-Lógico por que não? A amiga era amiga mesmo apesar de não ser mais amiga. Tivera a coragem de levá-la mesmo com o chapéu. Dirigiu em silêncio. E ela também em silêncio. Até pensou em dizer alguma coisa, mas nada lhe vinha à cabeça com o chapéu. Quando chegaram em frente ao bar disse à amiga:
-Obrigado por me trazer. E ganhou mais um abraço.
- Por que está me abraçando tanto? A amiga sorriu e as duas desceram do carro. Logo na entrada do bar, notou que todos olhavam para ela. Imaginou ser o chapéu, mas não deu bola. Estava num bar. Há quanto tempo não fazia isso. Não sabia se estava feliz por estar ali, era apenas uma questão de “há quanto tempo”. Sentaram-se numa mesa e amiga pediu uma bebida. Ela estava com fome, muita fome, e mal se lembrava disso.
- Eu quero um sanduíche qualquer e uma bebida qualquer.
A amiga pegou o cardápio e escolheu para ela. O bar era feio e brega, mas estava lá. Logo chegaram os amigos da amiga, que sentaram perto dela. Ela já tinha acabado de comer e bebido o suco que a amiga pedira. Estava satisfeita. Cumprimentara os amigos oferecendo-lhes a mão, o que causara algumas risadas. Não estava ali para beijar ninguém. Prestou atenção na conversa de todos. Estava tendo um bom momento. Podia dizer que tinha se divertido. Um amigo da amiga virou-se para ela e perguntou:
- Você percebeu que sua blusa está cheia de formigas?
- E o que tem as formigas?
- Nada, disse o rapaz encabulado. Ficou brava. O que esse estranho tinha a ver com as formigas delas. Algumas pessoas saem com cachorros, outras com gato, outras até com passarinhos no ombro, e qual o mal de sair com formigas? Decidiu que queria ir embora. Disse à amiga que tomaria um táxi. A amiga disse que a levaria e ela se levantou. Tudo escureceu. Quando acordou estava deitada no sofá de casa. O telefone tocando. Era a amiga:
- Alo.
- É você mesmo? Atendeu? Não acredito. Pensei que tivesse morrido ou mudado de país e esquecido de avisar.
- Não, sou eu mesmo, fala.
- Estou indo num bar novo, que inaugurou na Vila semana passada, não quer ir? Vai estar legal.
-Hoje não, já fui ontem.