quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Vem



Vem cá! Vem ver minha vida. Vem! Pode abrir a porta. Olha só como eu vivo. Sente como eu respiro. Olha a luz que me ilumina. Olha aqui essa ferida, viu? Me cortei cozinhando.
Vem ver minha dor enquanto leio o jornal de ontem. Vem que não tem mais ninguém aqui. Não precisa ter medo, não mordo, não corro. Eu não sinto raiva. Tenho defeitos, mas não aprisiono. Vem! Tem flores aqui também. Pus água nelas ontem, quando ganhei um abraço.
Aqui não tem truque. É pedaço por pedaço, não tem mistério, nada é particular. Eu quero até que você entre. Está todo mundo longe e eu sempre cozinho para muita gente, não sei fazer meio pacote de macarrão.
Vem! Quem sabe a noite você pode me ajudar a trancar as janelas antes de dormir. Aqui tem cobertor pra você, tem água fresca de filtro de barro, tem chão gelado para acordar os pés, tem banho quente pra lavar as lágrimas. Vem! De vez em quando aqui tem até poesia de ler e de ouvir. Tudo bem baixinho.
Agora que percebo que você está sentindo uma pontinha de vontade de entrar, devo te avisar: aqui também toca rock pesado e alto. Aqui de vez em quando acaba a luz. Completamente escuro e demora pra voltar um raio.
Sabe, às vezes as prateleiras esvaziam e a porta se tranca sozinha, então passo fome. Só aqui dentro, às vezes, faz um frio danado que nenhum cobertor dá conta. Tem dias em que a fumaça embaça completamente a visão, fica difícil até andar pela casa. Algumas noites de tão sombrias que ficam, aqui tem oração, dessas desesperadas quando deus, mesmo que não exista, tende a olhar por mim. Essa casa tem dias que parece que vai cair, e alguns tijolos até chegam a ruir. Eu me seguro e seguro a casa também, não se preocupe, mas que assusta, assusta! Não posso negar que tem dias que acordo com sono. E volto a dormir. Terás de ficar sozinho. Passo muito tempo sem sonhar, então ficaremos muitos dias sem assunto. Mas estou aqui fora, te esperando! Vem! Aqui é tudo verdade

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Eu no ritmo dele




Ele chega de surpresa, toca a campainha e vai entrando. Ô de casa, estou chegando. Me pega no meio de coisas absurdas, vestida sem o menor estilo. Me beija rápido, serve-se de água e olha a janela. Vai falando, falando, do dente do ciso, do livro que comprou,d a padaria nova que abriu perto de casa, do futuro emprego, o do alto salário, do antigo emprego, onde brigava por causa do salário, da ex-namorada argentina. E ah, o trânsito está um caos. Levei horas para chegar aqui! Senta no sofá, cruza as pernas, sorri. Sorri e seus olhos brilham e eu, disfarçadamente, passeio pelo seu sorriso e vejo como é bom. Sinto vergonha quando ele pergunta o que estou olhando. Coloco um CD e ele mexe nos cabelos, começa a cantar e diz que adora esta música. Pego uma garrafa de vinho, sirvo e ele bebe, ri e fala do último livro que leu e eu mal presto a atenção. Fico sem fôlego, pernas bambas, tensa, quero agarrá-lo, seu sorriso desvendado. Disfarço, fico tímida, não sei como fazê-lo, nem sei se devo. Tento lembrar da distância. Tosses! Faço gestos longos, sedutores e ele me pergunta se estou passando bem. Levanto, troco o CD e sirvo mais uma taça de vinho e ele bebe, ri, fala e conta do último filme que viu e eu tento me aproximar. Mais perto, talvez um abraço. Eu o desejo. Está esperando minha iniciativa, ou nada disso, pura inocência ou covardia mútua. Paixão travada. Uma garrafa de vinho que jorra e eu não consigo tocá-lo. Quero beijá-lo, mordê-lo, mas fico sem graça. Desejos! Tremendo e ele toma outro gole. Vai até a janela e reclama que vai chover e eu me aproximo. Preciso abraçá-lo e dizer muito, mas tudo emperra, reclamo da chuva e ele se vira, perto, bem perto, dá uma pausa, fica sério e diz, bem baixinho, que meu sorriso é bonito. Ele pega a carteira, vai para a porta e eu vou atrás, quase despencando. Recebo um beijo superficial e espero a porta se fechar para voltar a fazer coisas absurdas,sem o menor estilo. Talvez na próxima.

domingo, 19 de outubro de 2008

De quem é a dor? Então....


Ela desligou o telefone e sentou para chorar. Tinha que chorar sentada. Despedir de um amor de pé não importa, mas chorar tem que ser sentada. Pensou em ligar de novo, falar mais, pedir desculpas pelo que sequer tinha feito, dizer que eles poderiam se dar uma nova chance, mas só chorou. Sabia que dali em diante pensar naquele relacionamento só poderia trazer choro, nada de esperança. E no fundo era isso que sentia também, sabia que os dois não tinham sido felizes juntos. Sabia de tudo e muito mais, mas chorar ao se despedir de um amor é inevitável.

Chorou sentada por quanto tempo pode. E quando o chorou acabou, levantou para a tarde que estava cheia de vento, abriu as janelas e todos os papéis que estavam em cima da mesa voaram. O vento estava realmente forte. Tinha que sair, comprar comida, passear com o cachorro, tirar dinheiro e fazer essas coisas que se faz num domingo à tarde depois que se despede de um amor e se chora sentada. Mas ainda precisava falar. Ainda precisava que ele a ouvisse. A ligação era internacional e muito mais cara do que ela estava podendo pagar no momento. Pegou o celular e começou a mandar mensagens

SMS – Eu não queria que fosse assim. Ainda não consigo sentir que tudo acabou.
E saiu de casa, como celular na bolsa, cheia de ânimo para receber uma resposta. Supermercado. Algumas frutas e material de limpeza. Nenhuma resposta.
SMS – Estou muito machucada, tudo o que combinamos deu errado, tudo foi errado.
Posto de gasolina, encheu o tanque e tirou dinheiro para segunda-feira. O dinheiro estava acabando. Acabaria em breve. Nada de resposta. Guardou o carro em casa e saiu para passear o cachorro com o celular na mão.

SMS – Responde não me deixe falando sozinha!
No meio do passeio com o cachorro começou a chover. Sempre chove na hora errada. Ela sempre tem a sensação de que as coisas acontecem na hora errada. Os amores, os desamores, os trabalhos, os desempregos, o tempo, o dinheiro, tudo na hora errada. Sua vida tomava rumos sozinha, não sentia ter o menor controle sobre as coisas e isso a angustiava.
Sem resposta.
Pensou em viajar, em largar tudo e ir visitar o irmão que mora fora. Pensou em mudar-se, estava na hora de morar sozinha de novo, pensou em dizer a um cara que estava afins dele, mesmo apesar de estar vivendo a despedida do amor, pensou em contar ao analista que queria se relacionar de novo . Lembrou da amiga que acabou de separar e já beijou cinco cara. Pensou tudo absurdo. Não queria que nada tivesse acontecido assim. Sem resposta.
SMS- Não me ignore, responda.
Pensou na segunda-feira. Tinha uma reunião para um trabalho novo e não queria ir, tinha eu ir à academia e suas pernas falhavam, tinha que escrever e sua cabeça não conseguia sair de alguns quadrados. Não queria a segunda-feira. Não queira aquela semana. Queria parar no tempo e só voltar a contar quando as coisas estivessem mais fáceis. Mas quem não quer isso? Abusada você menina, quem não quer isso?
Sem resposta.

SMS – Certo, ok, a dor é minha, vou vivê-la sozinha, não precisa responder.



Foto by ~Mahini - deviantart

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Esperança


Um passo depois do outro e estou sempre atrás de você. Mesmo que você seja eu mesma, mesmo que nada faça sentido. Um passo depois do outro e eu crio histórias para fingir que minha realidade não existe e leio livros que me provam que limites são besteiras. Uma lágrima que cai sozinha e tenho até pensamentos românticos, desses de baldes de cores. Pensamentos coloridos. Daí eu choro em preto e branco e assim termina o filme.
Mas engulo toda a fumaça na esperança de preencher o vazio de viver e viver é cheio de fazeres. Eu é que estou do lado errado da rua, preciso atravessar mais ruas e assistir mais televisão. Preciso comprar uma agenda e ficar feliz em vê-la lotada. Preciso dar importância ao dinheiro e às cores das minhas roupas, preciso comprar remédios preventivos, creme anti-rugas, preciso me prevenir. Preciso fazer uma poupança, preciso fazer o seguro do carro, preciso ter um carro. Preciso comprar um celular, pagar previdência, fumar menos, sorrir mais, aceitar mais convites, colocar mais a cara na rua. Preciso atravessar a rua atrás de você.
E a dor de continuar me deixa com ódio e ódio é permitido sim. Não me digam que não, por favor, pelo menos hoje não! Ódio pode porque me machuquei, ódio pode porque o dia é longo e a noite é curta. Ódio pode porque o mar está longe e todos os personagens que crio, morrem. Eu os mato. Ódio pode porque amor que confesso me dizem ilegal. Ódio pode. Mas amor também pode, porque eu digo que pode. Porque amo quem não posso, porque amo árvore que caiu. Amor pode porque ainda segura as letras juntas. Amor pode, mas não hoje. Sou dessas também, contra o ódio. Mas ódio existe e não há transformação que o evite, por isso, viva o ódio também. Assim como viva o amor. O amor do sonho da vida que ainda não é minha. E só nessa palavrinha “ainda” vi esperança no meu texto, por isso eu paro.



Foto: sabotazystka - deviant

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

On the road



Quem eram as mulheres que ela queria ser? Onde elas estavam? Saiu do trabalho às 17. Um pouco mais cedo por tudo o que tinha passado. Nada fácil. Por umas quatro ou cinco vezes pensou em levantar e pedir demissão. E nas horas mais difíceis ainda pensou em levantar, pegar a bolsa e sair andando, sem nem avisar que estava deixando o emprego. Não dava mais. Não tinha mesmo nascido pra aquilo.
Quem era a mulher que ela queria ser? Onde estaria a mulher que ela queria ser? Desceu do elevador e saiu correndo do prédio. Correndo como quem está com pressa. Correndo como quem sabe pra onde está indo e precisa chegar logo, tamanha certeza.
Quando deu de cara com a avenida bem à sua frente, a sensação era de que havia ficado presa naquele prédio por anos e anos, sem ver a luz do sol, sem ver o trânsito da hora do rush, sem ver a fila de ônibus lotados e gente pendurada.Sem ver aquele mundo de luzes vermelhas entupindo a avenida. Respirou o ar de tudo aquilo como um tuberculoso respira o ar puro de montanha. Era exatamente o que ela precisava.
Quem eram as mulheres que ela queria ser? Cruzou avenida no sentido do ponto de táxi. Queria entrar em um e sumir dali. Pegar o tráfego da cidade, ir para casa, tomar um banho, arrumar as coisas e correr pra casa. A outra casa. Aquela casa do sossego. Aquela casa que é pequena, mas confortável como nenhuma outra pode ser, nunca foi!
Não tinha nenhum táxi no ponto. Hora do rush. Sentou no banco de madeira e esperou. Olhando a tarde cair, esperou. Olhou para o céu, que providencialmente prometia chuva. Pensou o quanto sentiu falta da poluição, mas agora já estava cansada dela. E finalmente olhou para o prédio onde trabalhara até então. Alto, o prédio. Alto mesmo. Sempre quis trabalhar num prédio alto. Não gosta de casas, tem medo de escritórios pequenos e não se sente à vontade com coisas feitas caseiramente. A única coisa caseira que gosta é doce de figo em calda. Aquele prédio, para o qual, no primeiro dia desse emprego olhou com tanto orgulho.... Olhou para aquele prédio no qual todas as vezes que entrava no elevador e apertava 11 se sentia tão feliz. Para aquele prédio, que por força maior, acabou virando parte da sua rotina nos últimos meses. Fitou o prédio. O prédio onde descobriu que não agüentaria por muito tempo mais aquela vida. Queimou com os olhos uma chapa do prédio onde o resto de seus sonhos profissionais havia morrido lentamente, doloridamente. Aquele prédio estaria para sempre em sua lembrança, disso ela tinha certeza. Olhou lá para o último andar e logo em seguida trouxe o olhar para os próprios pés. Seus tênis estavam sujos. Do arranha-céu que beira o cinza, para o tênis sujo, vestindo os pés no chão. Uma tomada rápida dos dois e a cena estava feita. Não olharia mais para aquele prédio, a não ser em sua memória. Quando a cena acabou, um táxi parou no ponto. Ela levantou, cansada como se tivesse esperado horas, e correu para a porta.
- Pra onde a senhora quer ir?
- Não sei ainda, no caminho eu te falo.
Entrou e sentou-se aliviada, como se tivesse sido resgatada de uma guerra. Acendeu um cigarro pós-guerra sem ao menos perguntar se podia fumar ali. Ele deu partida e saiu dirigindo devagar, afinal não tinha um destino. Ela disse:
- Faz o caminho que o senhor quiser por enquanto, até eu lhe dizer para onde quero ir. Deixa correr o taxímetro, não se preocupe.
Onde estavam as mulheres que ela queria ser? Pensou em ir pra casa direto. Quanto antes chegasse lá, mais rápido faria sua mala, mais rápido ligaria para a imobiliária, iria ao banco, deixaria tudo pago, doaria a maior parte dos móveis e contrataria, ainda naquele dia, um pequeno caminhão para levar as coisas para a casa de verdade.
Mas não! Antes de ir para casa queria ver a cidade. Olhava para cima e para baixo em cada rua que passava. Queria ver a fachada dos prédios, os mendigos no chão, os comércios, os out doors. Queria ver as coisas de um jeito que não tinha visto até aquele dia. Queria olhar com os olhos de quem se rende a si mesmo e se despede. Com olhos de quem já tomou toda garapa e não quer o pastel. Como em filme, colocou a cara para fora, para o vento bater, para o cheiro da cidade entrar nas suas narinas mais uma vez. Consegue lembrar também de cheiros. Consegue senti-los de novo. Basta que eles estejam gravados na sua memória. Consegue também sentir gosto só de pensar em uma comida. Consegue sentir a emoção de uma música só ao ler o seu nome.
Viu tantas ruas que quase esqueceu que a cidade era tão grande. Tudo parecia tão pequeno, tão perto dela, tão tocável, tão palpável. Tudo ali, a seus pés e ela não queria mais nenhum peso.
Quando passaram em cima de uma ponte ela lembrou do tamanho de sua pressa em ir embora. Pediu para o motorista pegar o sentido para sua casa. Deu as coordenadas, queria que ele fizesse o caminho dela e não o dele. Toda vez que pegava um táxi, era assim. Depois que reaprendera a andar na cidade, a se locomover tão bem, decidiu que só faria os caminhos que quisesse. Não seria mais enganada e nem pegaria trânsito à toa.
O motorista fez o caminho que ela pediu. Nem se atreveria fazer diferente. Ele também estava louco para acabar aquela corrida. Não gosta de gente que entra no seu táxi sem rumo, sem saber para onde ir. Sempre acha que isso é um péssimo sinal e não quer loucos tendo ataques no seu carro. Mas o trânsito estava ruim. Muitas avenidas paradas, sinaleiros fechados. Ela acha que tudo conspira para que ela fique mais tempo na cidade e mude de idéia. Ele acha que merece mesmo uma corrida como essa. Deve ter jogado pedra na cruz.
Ela acende outro cigarro. Dessa vez de nervoso. O passeio tinha sido uma boa idéia, passear sem rumo tinha sido interessante, mas agora não queria mais brincar disso, queria chegar em casa para ir para casa.
Tirou o celular da bolsa. Olhou: chamadas perdidas. Duas, do trabalho. Uma mensagem de voz. Era antiga. Era dele, há 4 dias atrás. Ela não estava perto do telefone, ele ligou apenas uma vez, ela achou que se ele quisesse mesmo falar com ela ligaria mais vezes e por isso não ligou de volta. Aliás, nem sabia ao certo em que número encontrá-lo. Tinha apenas o número da casa onde estava hospedado, a casa dos pais. E depois de tudo o que aconteceu não queria falar com os pais dele. Não ligaria. E enquanto pensava nele, o trânsito estava dando mais fôlego e eles estavam quase perto de chegar.
- O senhor mora aqui há muito tempo? Perguntou ao motorista.
- Há 30 anos, quando vim de Portugal.
- E gosta daqui?
- Gosto sim. Não saio daqui por nada.
Ela se espantou com a resposta. Ela daria tudo para sair daquela cidade naquele instante. Piscar os olhos e acordar em outra cidade.
Quem são as mulheres que ela quer ser? Foi o tempo de apagar o cigarro para estar na porta de casa. A corrida ficara cara. Mas tinha passeado bastante e pego um trânsito que de tão típico chega a ser atípico.
Pagou o motorista e antes de descer do carro disse a ele:
- Espero que o senhor tenha uma boa vida.
Achava que essas palavras eram o máximo de uma despedida. Nada poderia ser mais abandono do que dizer a uma pessoa para ter uma boa vida. Tenha uma boa vida quer dizer não nos veremos nunca mais e estou feliz por isso.
Desceu e correu para portaria. Tocou o interfone várias vezes, sem nem dar tempo do porteiro vê-la. Ele abriu, ela entrou correndo, assim como saiu do prédio durante o dia, chamou o elevador, que estava no último andar. “Tudo conspira para que eu fique mais nessa cidade e mude de idéia”. Esperou o elevador batendo o pé no chão, com as mãos na cintura. Estava brava, suando já. O coração batia a um milhão de passos por minuto. Um exagero, mas perto disso. Quando chegou, ela entrou e puxou a porta atrás de si. Apertou o seu número várias vezes quase gritando para que o elevador visse a pressa dela e subisse mais rápido. Procurou a chave na bolsa e já na porta não tinha encontrado ainda. O nervoso aumentava quanto mais devagar as coisas aconteciam. Abriu a porta e correu para o telefone. Lembrou que não tinha nenhum número de empresas de mudança e já eram 8 da noite. Pegou a lista telefônica, que guardava na cozinha. E foi olhar para a pia para pensar de novo que a cidade conspirava contra ela. Cheia de louças, teria que lavar tudo antes de fazer a mudança. Antes mesmo de empacotar ou doar as coisas.
A primeira companhia de mudança que ela ligou disse que só podia agendar algo para outra semana. Já era quinta feira. Mas de jeito nenhum que passaria ou deixaria nada seu passar mais um final de semana nessa cidade. Ligou para mais umas três, e a resposta foi a mesma. Já estava chorando. Teria que doar tudo. As coisas não caberiam no carro. Foi quando teve uma idéia tão absurda quanto brilhante. Ligaria para um ex namorado, lá de casa, para vir com a caminhonete dele ajuda-la. As coisas maiores ela doaria. Levaria só o que precisava imediatamente. Ligou. Com vergonha, mas ligou. Ele não entendeu, parecia ocupado e sem jeito ao ouvir seu pedido. Mas topou! Como sempre faz com tudo o que ela pede. Ele sempre a salva das situações mais complicadas, basta avisa-lo. Disse que em três horas estaria na porta da casa dela. Ela sorriu. Sorriu largo. Sorriu alívio. Sorriu felicidade como se mostra os dentes. Em seguida ligou para uma casa de caridade que conhecia e pediu que viessem buscar as coisas agora mesmo. Quando ouviram tudo o que ela doaria disseram que o caminhãozinho estaria ali em meia hora. Ela não sabia se as cosias caberiam num caminhãozinho, mas as queria fora da sua casa. Se caberia no caminhão ou ficaria na rua não era problema seu. Tentou ligar na imobiliária, lógico que não atenderam. Lembrou-se que não poderia deixar a cidade enquanto não entregasse as chaves do apartamento. Não voltaria para resolver isso. Decidiu que teria que ficar pelo menos até a manhã seguinte, para resolver isso. Pensou em ligar para o ex, que provavelmente já estaria na estrada. Mas desistiu! Que ele viesse. Não ficaria triste de ter que passar uma noite com ela ali, antes de irem embora de vez. Começou a encaixotar as coisas. Colocou todas as roupas dentro de malas, até a roupa de cama e de banho. Colocou os poucos livros que trouxera num outro saco. As coisas de cozinha eram poucas e feias, doaria tudo. O sofá da sala também. Levaria consigo a cama, televisão, uma peça de madeira onde guardava seus livros e cadernos, a geladeira e a máquina de lavar. O resto, tudo para caridade. Quando percebeu, tudo o que levaria já estava empacotado ou pronto para ser transportado.
Onde estariam as mulheres que ela queria ser? A instituição de caridade chegou em meia hora, como o prometido. Subiram em três e começaram a carregar as coisas. Nem ela acreditava na rapidez com que tinha feito tudo. Era a vontade de ir embora. O sangue corre quando tem pressa de chegar. O sangue corre quente, acelerado, super competente, quando se sabe o que quer ou pelo menos o que não se quer. Ela sabia disso. Olhou no relógio e ainda faltavam 2 horas para o ex chegar. Pensou que talvez não precisassem dormir na cidade. Poderia deixar o apartamento vazio, a chave na portaria e amanhã, lá de casa, ela ligaria para a imobiliária e mandaria pelo banco o dinheiro que precisasse para pintar o apartamento ou fazer qualquer outro reparo. Quase comemorou sua idéia, mas tinha mais dois homens carregando suas coisas na sala. Foi para cozinha e fez um café. A noite seria longa. Teria que carregar mais uma caminhonete e ainda pegar algumas horas de estrada até chegar em casa.
Quem seriam as mulheres que ela queria ser? Com uma rapidez de novo assustadora os rapazes conseguiram descer tudo o que ela tinha doado. Improvisaram caixas, sacolas e fizeram tudo caber. Agora era só esperar mais uma hora e meia e estaria quase salva. Sempre quis ser salva. Sempre. Esperava encontrar um salva-vidas e casar-se com ele. Acabou conhecendo um monte deles, mas nenhum conseguiu salvar a sua vida. Essa tinha sido uma tarefa que tinha ficado mesmo a seu cargo. Tinha salvado a própria vida várias vezes, como faria hoje, só precisava de uma carona que pudesse levá-la e suas coisas. Coisas que só estava levando para não partir com a sensação de estar voltando com menos do que veio. Mas sabia que isso não era necessário. No fundo sabia que estava voltando com muito mais do que veio. Foi para cozinha e tomou um gole de café que ainda estava na cafeteira que levaria com ela. Adorava café. Precisava da cafeteira como nada no mundo. Acendeu um cigarro e a próxima hora passou como um desenho antigo, várias superposições de imagens que passadas rapidamente dão movimento à cena.
O interfone tocou e era o ex. Ela mandou subir e correu esperar com a porta aberta. Queria vê-lo assim que saísse do elevador. Tinha pressa em dizer o quanto estava grata pela ajuda. Não podia dizer menos que isso. Nem mais, na verdade.
Ele chegou com cara de cansado e surpreso.
- Mas o que está acontecendo.
Antes que ela respondesse, e depois de um rápido abraço, que ela queria que fosse demorado, mas ele se apressou, ele entrou no apartamento e fez mais uma pergunta:
- O que aconteceu por aqui? Foi assaltada?
Ela riu. Era a primeira vez que ria naquele dia. E sabia que em horas como essas, só pessoas como eles poderiam fazê-la rir.
- Não, disse sorrindo. Quero ir embora daqui hoje. Já doei metade das cosias, a outra metade espero que a gente possa levar.
-Mas você não me avisou que eu deveria ter vindo de caminhão.
Ela arrepiou em imaginar que tivessem que passar a noite na cidade. Mas ele entende de tudo um pouco, se está olhando as coisas e dizendo que não cabe, é porque não cabe.
- Você acha que não consegue colocar tudo dentro da caminhonete?
- Lógico que não, está louca? O que está acontecendo com você? Por que quer sair daqui assim, correndo. Do que está fugindo? Alguém te magoou? Você está metida em alguma confusão?
- Nossa, olha quantas perguntas me fez. Mas respondo tudo. Não estou fugindo de nada, apenas quero ir embora hoje e não preciso explicar isso pra ninguém. Mas agradeço a sua preocupação.
- Ta bom. Mas se quer sair daqui hoje e com suas coisas, melhor alugarmos um caminhãozinho. Conhece o telefone de alguma locadora de carros?
-Calma. O que você acha que dá para levar?
- No máximo a cama, a televisão e esse monte de malas que estou vendo ai.
- Será que aquele móvel de livros não cabe??
- Posso tentar. Mas preciso de alguém pra me ajudar.
Ela foi ligar para o porteiro pedir ajuda. E no caminho da cozinha decidiu que levaria o que desse, o resto doaria para a mesma instituição ou pro porteiro talvez.
Ele subiu para ajudar e disse que se interessava sim pelo que ela estava querendo vender.
-Não estou vendendo. Estou te dando.
O homem ficou feliz da vida. Ajudou a em menos de 2 horas descer tudo e colocar na traseira da caminhonete, amarrar a geladeira com uma corda para que não balançasse. Graças a ele coube também a estante de livros.
Ela olhou para o apartamento, para o que sobrou e sorriu a certeza de não precisar nada daquilo. Sorriu para o ex, que cansado de carregar móveis sugeriu que jantassem antes de partir. Ela implorou que não. Deveriam partir o mais rápido possível. Tinha que pegar a estrada naquele instante. Não poderia perder nem mais um minuto. O tempo já tinha passado como vento. As coisas já tinham ido na direção errada por muito tempo. Os peixes morreram no aquário, a acabou o incenso, a água ferveu e evaporou, fez sol, fez frio, choveu e fez sol de novo. Ela tinha que ir embora. Esperar seria jogar palavras fora e nunca mais encontra-las para acabar o texto. Seria rasgar dinheiro, seria queimar o filme, seria furar um pneu, seria derramar o café, seria transbordar o copo, seria beber até cair, seria queimar a pestana. Não mais. Tinha que sair dali.
Ele aceitou a explicação, apesar de não entende-la. Entraram no elevador. Ela pegou na mão dele. Queria dar a mão para alguém para começar sua viagem mais esperada. Precisava dividir com alguém aquele momento, precisava da segurança que a mão dele poderia dar. Nem que fosse só por aquela noite, e era. Ele continuou não entendendo o que acontecia. Mas amor de amigos ex amantes é assim, quase sem fim. Entraram na caminhonete, ele pegou as avenidas vazias e os sinaleiros abertos. Afinal já era madrugada. Chegaram à estrada em poucos minutos. Ela, diferente do que havia planejado, olhou para trás e acenou para o monte de luzes que estava abandonando.
Quem eram as mulheres que ela queria ser? Onde elas estavam? Não sabia. Era certo que não sabia.



Foto: hansheeda - deviantart

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O telefone, as formigas e o chapéu


O bar era brega, e escuro, mas e daí? Há quanto tempo não saia de casa? Há quanto tempo estava escondida atrás da cortina imaginária, de tecido, velha e fedida. Há quanto tempo os cinzeiros estavam sujos, a pia lotada e a geladeira vazia? Hora de sair e não de pensar em quanto tempo. Uma amiga, querida amiga, mas que já não tinha nada mais a ver com a vida dela, tinha ligado. Pela primeira vez em muito tempo atendera ao telefone.
- Alô.
- É você mesmo? Atendeu? Não acredito. Pensei que tivesse morrido ou mudado de país e esquecido de avisar.
- Não, sou eu mesmo, fala.
- Estou indo num bar novo, que inaugurou na Vila semana passada, não quer ir? Vai estar legal.
-Vou.
Aceitou por aceitar, para brecar uma roda que estava girando há semanas. Para respirar, mesmo que fosse à idéia de ir. Mesmo que não fosse ao bar de verdade.
- Que bom que topou, passo aí às dez ta?
- Ta.
E desligou o telefone sem se despedir. Já que a amiga queria sair com ela, sairia, mas ser gentil naquele momento não ia dar. Continuou sentada no sofá pensando em como faria para sair de casa. Que roupa colocaria, que sapato, que cabelo, que unhas, que cara? Com que cara ia sair de casa? Mas iria, estava certa de que iria. Já eram oito da noite. Alguma coisa tinha que ser feita se quisesse estar pronta as dez. Do jeito que o apartamento estava não conseguiria chegar ao quarto as dez para se arrumar. Tudo, mas tudo mesmo que possuía estava no chão. Não sabe como, mas até seus livros foram para o chão. As formigas estavam lá há dias. Sempre gostara de formigas, desde a infância, talvez por isso não tivesse se incomodado em limpar nada. Não, não era só por isso, lógico que não. Se gosta tanto assim de formigas, poderia colecioná-las numa latinha e não transformar a casa num chiqueiro para que elas viessem. As coisas estavam assim porque estavam assim.
Acendeu a luminária do lado do sofá. A lâmpada ainda funcionava, o que lhe deu um certo ânimo. Algo funcionava. Olhou para a luz por alguns minutos. Imaginou tantas coisas. Imaginou tantas casas, tantas vidas, tantas noites, tantos planos que até saiu do lugar. Levantou-se e foi pulando o resto dos dias que estava no chão. Foi ao banheiro e ali, com menos sorte, a lâmpada não funcionava. Olhou-se no espelho escuro e agradeceu a lâmpada que não acendia. Parecia cinza ou era a falta de luz? Parecia outra. Parecia alguém que não via há muito tempo. Parecia alguém que parara há muitas estações da dela. O chuveiro ainda funcionava. E foi só quando tirou a roupa que percebeu o quanto fedia. Há quantos dias não tomava banho? Muitos. Entrou embaixo da água e abriu a boca, rindo como uma doida que ri da água. Riu que se matou. Riu tanto que engasgou com a água que caia. Não sabia do que ria. Talvez do banho, talvez do cheiro que ia embora ralo abaixo com ela. Ria. Ficou uma hora se molhando. Sem sabonete, xampu ou condicionador. Alguém disse a ela uma vez que a água lava tudo. E lava. Saiu molhada pela casa em busca de uma toalha. Busca inútil, nada limpo. Secou-se com uma toalha suja mesmo.
A risada tinha lhe feito bem. Estava agora disposta a encontrar uma roupa e se arrumar para ir ao bar com uma amiga. Abriu o guarda roupa e surpresa: só formigas. Como aquelas formigas tinham tomado conta da casa? Ela cumprimentou a todas, uma por uma que via e pediu licença para achar uma roupa. Achou: uma calça vermelha, uma blusa xadrez e um tênis branco. Simples, a cara dela, e a única coisa usável que vira. Vestira-se rápido. Decidiu não usar meias. Sempre tivera os pés frios, mesmo dentro das meias. E ficava com mais raiva ainda quando saia de meia esperando não sentir frio e sentia. Para que meias, então? E o cabelo, o que faria com o cabelo? Tentou passar o pente, inútil, o cabelo estava todo embaraçado e não achou um pote de creme pela casa. Decidiu prender de qualquer maneira e procurar por um chapéu. Há muitos anos atrás sua avó lhe dera um chapéu vermelho, sabe-se deus por que, mas se achasse ficaria legal. Abriu novamente o guarda-roupas, pediu licença ás formigas e pegou o chapéu vermelho, que estava à vista. De chapéu foi ao banheiro pedindo por uma pasta de dentes, e encontrou. Escovou os dentes e sentou como uma mocinha que espera a carona no sofá da sala. Sentia-se bem. Tinha conseguido se arrumar e uma amiga viria buscá-la para sair. Esperou um tanto que não achava normal. Parecia que estava pronta, vestida, esperando há horas e na verdade esperara apenas meia hora. Interfone, porteiro avisando que amiga chegara. “Sempre pontual”, pensou. “Eu que estava adiantada”. No elevador estranhou primeiro o espelho, onde se via no claro, estranhou também o elevador. Há muito tempo que não se via ou ao elevador. Mas gostou do que viu e desceu. Passou pela portaria sem olhar o porteiro ou dizer boa noite. Estava assim, com poucas palavras disponíveis e pouca vontade de se comunicar. Desceu as escadas e viu o carro que parecia ser o da amiga. Entrou e falou.
-OI. A amiga olhou para ela, abraçou-a e disse:
- Você tem certeza que está bem para ir a um bar?
- Lógico, por que não?
- E tem certeza que vai com esse chapéu?
-Lógico por que não? A amiga era amiga mesmo apesar de não ser mais amiga. Tivera a coragem de levá-la mesmo com o chapéu. Dirigiu em silêncio. E ela também em silêncio. Até pensou em dizer alguma coisa, mas nada lhe vinha à cabeça com o chapéu. Quando chegaram em frente ao bar disse à amiga:
-Obrigado por me trazer. E ganhou mais um abraço.
- Por que está me abraçando tanto? A amiga sorriu e as duas desceram do carro. Logo na entrada do bar, notou que todos olhavam para ela. Imaginou ser o chapéu, mas não deu bola. Estava num bar. Há quanto tempo não fazia isso. Não sabia se estava feliz por estar ali, era apenas uma questão de “há quanto tempo”. Sentaram-se numa mesa e amiga pediu uma bebida. Ela estava com fome, muita fome, e mal se lembrava disso.
- Eu quero um sanduíche qualquer e uma bebida qualquer.
A amiga pegou o cardápio e escolheu para ela. O bar era feio e brega, mas estava lá. Logo chegaram os amigos da amiga, que sentaram perto dela. Ela já tinha acabado de comer e bebido o suco que a amiga pedira. Estava satisfeita. Cumprimentara os amigos oferecendo-lhes a mão, o que causara algumas risadas. Não estava ali para beijar ninguém. Prestou atenção na conversa de todos. Estava tendo um bom momento. Podia dizer que tinha se divertido. Um amigo da amiga virou-se para ela e perguntou:
- Você percebeu que sua blusa está cheia de formigas?
- E o que tem as formigas?
- Nada, disse o rapaz encabulado. Ficou brava. O que esse estranho tinha a ver com as formigas delas. Algumas pessoas saem com cachorros, outras com gato, outras até com passarinhos no ombro, e qual o mal de sair com formigas? Decidiu que queria ir embora. Disse à amiga que tomaria um táxi. A amiga disse que a levaria e ela se levantou. Tudo escureceu. Quando acordou estava deitada no sofá de casa. O telefone tocando. Era a amiga:
- Alo.
- É você mesmo? Atendeu? Não acredito. Pensei que tivesse morrido ou mudado de país e esquecido de avisar.
- Não, sou eu mesmo, fala.
- Estou indo num bar novo, que inaugurou na Vila semana passada, não quer ir? Vai estar legal.
-Hoje não, já fui ontem.