segunda-feira, 28 de abril de 2008

Rilke


No mais íntimo, onde jamais alguém entrou; uma porta se abrira, estavas junto aos alambiques no clarão das chamas. Lá, para onde, desconfiado, nunca levastes ninguém, permanecestes sentado discernindo mudanças. E porque estava no teu sangue o desejo de se apresentar, não o de formar ou dizer, tomastes a decisão terrível de, sozinho, aumentar de tal forma aquele mínimo que tu mesmo de início só divisavas através de vidros, que se apresentasse imenso diante de milhares, de todos . E teu teatro nasceu. Não podias aguardar que essa vida quase sem dimensões, comprimida em gotas ao peso dos séculos, fosse encontrada pelas outras artes, tornada aos poucos visível para indivíduos para indivíduos que paulatinamente comungam no reconhecimento, e por fim querem ver os sublimes rumores confirmados na parábola da cena desenrolada diante de seus olhos. Não podias esperar por isso, estavas ali, tinhas de executar o quase imensurável: um sentimento que se eleva meio grau, o ângulo do fiel da balança de uma vontade acrescida de um quase-nada, esse ângulo que conferias bem de perto, a leve turvação numa gota de desejo, a sombra de alteração na cor de um átomo de confiança: era isso que precisavas constatar e reter; pois nesses acontecimentos estava agora a vida, a nossa vida, que deslisara para o nosso interior , e se recolhera ali, tão no fundo que mal podiam tecer em torno dela vagas suposições.



Texto: Rainer Maria Rilke
Livro: Os cadernos de Malte Lauids Brigge
Foto: Ukitakumuki - Deviantart