sexta-feira, 9 de maio de 2008

Uma foto, um peixe


Era só uma foto que eu tinha. Só. Uma foto apenas. Um sorriso estático, um abraço que não se mexia, um beijo do qual eu não podia sentir o calor. Não pude contar com a memória, que não bastava. Era apenas uma foto, parada. Servia para um porta-retratos, um durepox e colar na parede, ou colocá-la na carteira, dobrada, dividindo o amor ao meio para fazer caber. A foto era de um dia de sol. Um raro dia de sol. Estávamos de óculos, éramos felizes, estávamos tão perto. Mas depois só sobrou a foto. E apenas uma. Uma cena e mais nada. Não apelem pra minha memória, já disse que não posso contar com ela. Danos irreversíveis.


Sentei sozinha, de pernas cruzadas, em frente ao mar com a foto na mão. Na foto também estávamos sentados no chão. Estávamos tão à vontade. Nosso corpos tão juntos, estávamos grudados, os mais desavisados poderiam pensar que tinha photoshop ali. Mas não, grudávamos de vontade, grudávamos de urgência. Queria com ele as pizzas de domingo, os sorvetes de noites quentes, os vinhos das frias, a cama de noites nossas, os passeios de dias de sol, as compras para o nosso futuro, as discussões de quem ama mais. E acreditava em tudo isso. E uma dessas coisas que queria virou uma foto. Só essa que tinha em mãos naquela hora, em frente ao mar. A foto ficara pra mim, como um brinde pelos anos vividos. Um bônus de quem comportou-se mal. Uma imagem, uma cena pra lembrar. Mas eu não me lembro. Coisa da memória que já expliquei. Acho que justamente por não me lembrar, joguei a foto ao mar.


Um peixe, uma tal de nova espécie de peixe achou a foto. E gostou, estava sozinho nos últimos tempos e achou a foto romântica, apesar de já um pouco manchada. Resolveu fazer sua próxima travessia com a foto na boca. E lá seu foi o peixe azul com a nossa foto na boca. Cruzou mares, oceanos. Mostrou a foto para seus outros amigos peixes inteligentes ( é! já se produz desses) e foi feliz, como se tivesse ganho um prêmio por achar uma foto.


Até que chegou numa praia cheia de peixes como ele. E logo se apaixonou,o que não é de estranhar um peixe se apaixonar, é? Acho que não! Eu não estranho! Assim, já amando, resolveu largar a foto. Pensou em viver a sua hora de amor e não ficar carregando foto de amor dos outros. A foto foi parar na areia, toda manchada, mas por incrível que pareça - assim incrível como peixe se apaixonar- ainda visível.


Ele, o da foto, estava naquela praia, pensando triste na areia no que fazer com suas memórias. Sim, ele tem memórias, lembranças, e achou a foto. Mas ele não acredita que peixes se apaixonam então achou muito mágico aquela foto ter ido parar nas mãos dele assim. Quase jogou a foto de volta, como se fosse uma mágica ruim. Mas olhou para nosso sorriso e resolveu ficar com a foto. Sentou-se na areia, secou bem a foto estática e ficou ali, feliz com suas lembranças. Ele as tem.

5 comentários:

Narradora disse...

Lindo, lindo!
Ele o complemento. Duas formas diferente de ver o mesmo evento.
Amor machado... peixe namorado... lajota laranja.
Bjs

Janaina Fainer disse...

ah amiga,
vc é concorrencia desleal
seus textos são muito muito bons
sou sua fã
sempre

Cla disse...

Q bonito!Muito poético...sentimento derramado em cada linha,tanto desse,como do outro.Parabéns!Os textos me tocaram,como acho que emocionariam a qualquer um que ja viveu uma historia de amor,por mais ou menos intensa que tenha sido.

Beto Mathos disse...

O sentido está aqui, sentido em todos os sentidos.
Lindo!

Luciana Cecchini disse...

Gostei dessa idéia dos textos se complementarem. Gostei do peixe que deixa o amor alheio pra se apaixonar. Do peixe nada sem medo, por mares e oceanos, que viaja e encara. Do peixe que traz de volta a lembrança desprezada. Da lembrança depois gurdada. Pra ser lembrada, enfim. Lembrada.

Bjo!