sexta-feira, 6 de junho de 2008

Ódio ao telefone


Telefone que toca é para ser atendido. Nem sempre!
Atendido pela pessoa certa é sempre. Quando ligo para casa de alguém quero que o amor me atenda. Mas acontece do ódio querer atender. E não tenho mais educação. Os bons modos me plastificaram e fui parar na geladeira, num zip lock. Não mais.
Agora sou nua e mal educada, como uma boa moça no auge de suas vontades. O ódio atende e eu desligo. Mas o telefone celular, esse aparelhinho desgraçado de caça às bruxas, não pára de falar. O ódio é poderoso e a voz continua a dizer:
- Alô, alô.
Não resisto, não consigo. Sou mal educada e fraca de cabeça. Atiro o telefone pela janela. O impulso que faço com o braço é olímpico. Meus ombros se movimentam como se movimentariam na Atenas antiga. Mas ainda me sinto na cova dos leões quando vejo que o telefone caiu em outro prédio - e de longe posso ver que caiu na portaria do prédio na frente do meu.
Sim, se sou olímpica, tenho um olhar poderoso.Moro grande, com árvores plantadas e podadas todos os dias pela tesoura do crescimento organizado, por ordens do plano diretor.
O telefone cai em outro prédio grande. O porteiro vê o aparelhinho com a luz acesa no chão e fica ressabiado. Pensa em levantar da sua cadeira de vigia e bisbilhotar o telefone voador. Levanta seus sapatos de quatro ônibus por dia e pega o telefone nas mãos. Antes mesmo de colocá-lo no ouvido, ouve:
- Filho da puta, como não responde? Desgraçado, sua vida é de inferno.
Ao ouvir o ódio falar, o porteiro, calmo até então, feliz com as horas extras que a noite lhe paga, se transforma. Odioso fica e sobe nas paredes. A portaria não tem mais chão ou teto. Ele anda como uma aranha com sede de matar. A portaria tem uma arma. Disseram-lhe que o mundo anda violento. Justo pra ele?
“Mas use com cuidado, seu pobre ignorante, para não criar problemas”, avisaram-lhe. “Pobre ignorante odeia e quer matar”, pensa o porteiro. O celular está na bancada falando coisas que só o ódio fala. Pega a arma, abraça com as mãos, com quase-carinho.
-Corno, filho da puta, fala se for homem. Me encara se tiver colhões.
Seus olhos estão tão vermelhos que até o espelho quebra para não olhar a cor do ódio, não reconhecer que ela existe. Ele sai da portaria, chama o elevador e vai de andar em andar, atirando em todos os moradores que vê. Ninguém reage ao ódio inesperado. Ele mata a todos no prédio. Invade apartamentos. Atira na cabeça para matar sem tempo de ter história. Sem testemunhas para noticiário de tevê. Atira o que o ódio lhe atirou. Tira da arma as balas e as coloca no próximo passo da vida dos outros, o fim.
Depois de matar todo o prédio e de ter visto mais sangue que o vermelho dá conta de ser, volta para portaria, onde encontra o aparelhinho odioso e com a mesma força no ombro que eu tive, com o mesmo impulso dos meus braços atira o aparelho para o outro prédio.
Continuo na minha janela, com minha visão olímpica. O aparelhinho vai parar em outra portaria. E antes que eu pudesse imaginar o que aconteceria por lá, o prédio que morreu, cai, desaba. Vai ao chão, assim como em filme. Ruiu. Todos estavam mortos e morreram de novo. Ou pelo menos já morreram mortos, o que deve ser menos dolorido. O porteiro, que tomou a morte nos ouvidos e nas mãos, morreu embaixo de todos eles. Morreu como viveu, embaixo, à beira, à margem, vigiando o sono, enfrentando perigos para que os mortos de agora dormissem em paz.
O porteiro do outro prédio sai correndo assim que vê o aparelhinho que não quebra cair no jardim na frente da portaria. Eu penso:
- Esse é mais apressado. Quem sabe é mais forte e resistirá ao ódio.
Ele pega o aparelho nas mãos e ouve:
- Vagabundo, vadio, puto desgraçado. Não vai falar nada não, seu corno do caralho?
O porteiro fica ouvindo por alguns segundos. E eu também. Minha audição é sensível ao ódio, por isso ouve de tão longe. E mais: não preciso explicar isso.
Alguns minutos de ódio verbal, o porteiro chuta a porta de sua jaula e pega uma arma, que esse prédio, por prevenção, também tem. Entra no elevador e começa de baixo, tiros do primeiro ao décimo quinto andar. Nem cachorro se salvou. As cenas não o chocaram. Queria todos mortos, se não fosse pelo ódio do telefone, que fosse pela doçura de suas balas. Depois de todos mortos ele vomita o sangue que derramou.
Volta à portaria e com muito mais força que eu e o primeiro porteiro atira o celular bem longe. Ódio voa. E mais uma vez eu vejo: o prédio cai. Cai de ódio. Ódio derruba, destrói em série e isso não é filme. Roteiro nenhum e nem sequer som. A morte de todas essas pessoas em prédios bem próximos ao meu e nem um grito ouço eu. Nada. Sem lamento. O ódio não aceita lamento, é intolerante. Ódio impiedoso. Morram, não chorem, não lamentem e morram duas vezes, pois seu prédio vai cair.
E eu, da minha janela assisto a mais um porteiro morrer soterrado embaixo de palácios em caixas.
-Tchau porteiro, penso eu. O ódio é seu e não mais meu.
Mas a essa altura o celular abominável já está no terceiro prédio. Onde o porteiro dormia e sonhava com focas, sim! Queria ver uma foca um dia. Morreria sem ver uma, o desgraçado. Ele acorda ao barulho da queda do aparelho, põe ao ouvido e ouve:
-Você me subestimou, agora acabo com você, seu canalha.
É o primeiro porteiro a se assustar. As pernas tremem, ele nunca foi muito forte, ouvi dizer e não conto de quem. O medo lhe rasga a alma. Ele não agüenta a voz do ódio, pega mais uma arma na portaria e se dá um tiro ao ouvido. O barulho estridente que penetra seus tímpanos é ampliado em pelo menos um milhão de vezes. E o prédio também cai. Cai ao barulho estridente, cai demolido de sons. E mata pessoas vivas. Essas morreram vivas, penso eu, da minha janela de vidro, que nem sequer uma rachadura tem.
Ele morreu e o celular continua falando ao seu lado. Sem dó.
A visão que tenho agora é de que o centro da cidade, pelo menos três ruas abaixo, foi praticamente destruído. Um buraco negro de vida se abre bem à frente do meu prédio. Buraco de vida é morte, sabia? Buraco de amor é ódio sabia? Quem mandou o ódio atender ao telefone?
Ainda na janela vejo um homem. Um homem iluminado, que não sei por que me parece com Deus. Não que tenha visto Deus um dia. Tenho visto muito ódio para ver Deus. Mas o cara é Deus e vem subindo as ruas, olhando os prédios caídos e balançando a cabeça, em sinal de reprovação. Prova de que ele é Deus é que ele desliza e não anda. Plaina sobre o que sobrou de rua. E vem com o celular na mão. Agora desligado. Deus desligou o celular de ódio e caminha sóbrio em minha direção. Um piscar de olhos e ele toca minha campanhia. Eu abro e ele é Deus. Olha pra mim e eu digo:
- Shhhhhhhhhh, silêncio.
Foto by SimpleScene - Deviantart

8 comentários:

aluaeasestrelas disse...

Incrível como vc se inventa e reinventa de tantas formas... Ou melhor, vc inventa e cria histórias que me emocionam e me fazem rir. Quase ao mesmo tempo. Quero um dia chegar assim, pertinho do que vc é hoje... Ô batalha!!!
Tenho adorado cada texto seu. Continue, continue... E obrigada por estar sendo essa companhia constante junto daquilo que escrevo.

P.S. O processo é doloroso mesmo...Mas necessário e não tem volta. Mas no final, acho que vou encontrar o pote do tesouro...

Beijão!!!

aluaeasestrelas disse...

Não faz assim que vc me acostuma mal... Acredito mesmo que depois de todo esse processo, da tempestade, o arco-íris com o pote de tesouro ou mesmo vazio, só simbolizando a travessia, vai surgir...

Obrigada de coração por essa "troca" virtual. Obrigada por fazer parte desse processo. Minha amiga virtual, inspiração, exemplo. Beijo grande!!!

Joice Worm disse...

Viche Maria, o melhor é não pagar a conta do telefone, e vê-lo cortado...
Xô, ódio!

Beto Mathos disse...

Surpresa este texto, uma boa e grata surpresa.
Poesia é isto, aventurar-se, reinventar-se e ser novo à cada letra.
Beijo!

Anônimo disse...

Ligações que não ligam...

Unknown disse...

olha, camilla, confesso que ainda não li esse texto, mas fiquei tão empolgada com o que você escreveu no meu blog que quis vir aqui correndo responder.
obrigada por tuuuudo mesmo.. e por fazer parte deste "processo", desta "evolução".
poxa, nunca mais volta pra cá? nem para uma visita a uma amiga virtual? hehehe quando (e se) vier, me avise...
espero que você saiba que tens sido uma inspiranção e tanto.. e até mais do que isso, um apoio e incentivo fantástico para eu escrever mais e mais...
beijos, camilla...
obrigada por tudo!!

(agora vou ler o texto!)

Unknown disse...

agora sim, posso dizer alguma coisa.. hehe
bom, nem preciso dizer que seus textos são incríveis e que, mais uma vez, me sugaram. estou ali, andando com Deus, ouvindo o ódio gritar ao telefone.
esse tal de ódio quando resolve atender é mesmo uma desgraça total... mas e se nós carregarmos o amor dentro do peito, escondidinho, nem que seja o mínimo, para essas situações?
acho que cada gota de amor se faz importante na "dissolução" do ódio.
acho fascinante como você brinca com o texto.
beijos, querida.
até a próxima (estou ansiosa para ver qual será.. hehe)

Luciana Cecchini disse...

Primeiro, adorei o novo visual do blog. Tá demais, inclusive com esses deliciosos "aperitivos" aí do lado...

Agora, sobre esse texto, especificamente: fiquei estática por alguns segundos. E estou sem palavras. Alucinada. Pensando, sentindo. Me deu medo porque acho que é assim mesmo que anda esse mundo infernal. Abarrotado de sentimentos ruins que se espalham como virus mutantes da morte.

Outra coisa:não posso deixar de dizer que você está em ótima fase. Profunda e tocante, como sempre. Camilla é Camilla sempre. Essa é a sua essência: você é profunda de qualquer jeito, em qualquer lugar. em qualquer que seja a ocasião. Acredite e não tema.

Bjo,


Luciana