sábado, 19 de julho de 2008

Assino minha vida


Assino minha vida.
Registro-a em cartório com firma reconhecida.
Não preciso de testemunhas.
A vida que foi não precisa de testemunha além de mim e minhas memórias.
Passado meu, testemunha eu.
Nem quem amei é testemunha do que se realizou em mim.
Assino minha vida.
Minhas decisões foram chuvas de verão.
Refrescaram na hora, inundaram a avenida lá de baixo.
Os comerciantes reclamaram, a prefeitura se manifestou, saiu na tevê e no jornal.
Mas foram assim.
Meus amores foram intensos, lavrados com sangue, suor e cerveja gelada.
Noites longas. Manhãs de ressaca. Meus amores passaram.
E eu assino abaixo de todos. Reconheço firma deles também.
Fui tragédia em vários atos. E nos intervalos, a grande sala de espelhos estava aberta a todos.
Não precisou traje de gala, nem de convite vip. Quem veio, viu. Viu-se.
Fui teatro experimental, com exercícios de confiança e quedas no palco de madeira.
Os espetáculos foram bem ensaiados, pouco público pagante, muito publico errante e muitas cadeiras cativas.
Fui jogo de capoeira, fiz comprimento e meia lua noites inteiras.
Fui bailinho no escuro. Roubei vassouras e roubei meninos das meninas.
As meninas não gostaram, os meninos gostaram por pouco.
Fui jardim plantado novo.
Ainda sementes que não cresceram porque a terra fez muita força.
O adubo do saber estava em falta quando fui jardim.
Mas assino minha vida.
Quis um dia tudo colorido. Abusei das combinações.
Fiz bagunça de emoções e me dei mal nas reações.
Fui fraca como árvore nova. Caí.
Queria sabores e cheiros. Tudo de um pouco, inteiro!
Juntei dor, amor, compaixão, amizade, raiva, carência, tudo na mesma panela.
Fiz uma torta e minha vida nunca mais seguiu em linha reta.
Não comi nenhum pedaço, de medo de passar mal à noite.
À noite na casa vazia, onde o som é de medo de fantasmas.
A luz salva o coração disparado e a televisão é o consolo de quem não acredita em estar só.
Hoje acabo em texto seco. Em rudes palavras sem ligação.
Sem molho, sem tempero e sem ação.
Palavras que pedem pra sair e imploram pra ficar escondidas nos meus arquivos.
Mas me mostro, afinal assino a minha vida e a partir de agora quero testemunhas que me digam que o resto pode ser mais fácil.
Eu peço perdão. Perdão as pedras que chutei, aos lixos que derrubei, as garrafas que quebrei.
E tudo isso virou bagunça.
Mas eu assino minha vida.
Continuo sem receitas certas, sem saber quais cores combinam comigo, sem consciência de como fazer espetáculos com mais público pagante, sem parar de pedir perdão.
O que se realizou de mim é só resultado.
Não é culpa, não é arrependimento, não é frustração. Não!
Um dia ainda me lembro da longa viagem e assino dela também o que de mim hoje chora.



Foto:Tekno_love_song_by_Paulusa - deviantart

22 comentários:

Jacinta Dantas disse...

Excelente texto. O comando de nossas vidas está em nossas mãos, no jeito que nos somos e nos colocamos no mundo, no jeito de nos fazermos pessoa - as várias pessoas que vão nos constituindo como somos e moldando o nosso Eu. Então, Eu assino a minha vida, eu a reconheço, eu a testemunho, eu a vivo.
Amei seu espaço.

Anônimo disse...

Esse papo PODE.
Ponto final não pode.

Thiago disse...

isso mesmo moça assine em baixo.
e não foi vc mesma quem viveu? vc é testemunha da sua estrada, e deve deixar o que for ruim no meio do caminho e leve só o que for importante pra vc, e assine tudo o que vc viver no meio do caminho.

Alexandre Henrique disse...

Assinou a obra de arte, com a experiência de uma artista que é a própria arte. É um texto andarilho. Imagens suaves com pequenas pausas, com uma nota fraquinha de tristeza, nostalgia?! Não sei bem, mas que percorre até o final, que teoricamente não tem fim .
A necessidade de unir os fragmentos para forma uma unidade, sem dúvidas, destrói os outros inteiros, o importante é manter a sobrevivência da vida, o fluxo reação, o resultado realmente adquirido, é isto o texto revela aqui. A vida é irônica, nunca sabemos perfeitamente o caminho que tomamos ou vamos tomar, mas a responsabilidade sobre o caminho é inevitável. Belos detalhes, camada por camada!
Também adorei estar aqui :), a página é linda e muito interessante. Parabéns!

Germano Viana Xavier disse...

Tebet,

teu desabafo é torrente e chuva inteira. Molha a roupa de quem lê e faz pensar. Um dia quero ter a tua certeza e depositar sobre um contrato eterno a assinatura de minha vida. Confesso que estou já mais crescido que antes e fazendo jus àquilo que ultimamente faço.

Tua palavra é força em mim e se transforma em alimento. Estava sem internet nos últimos dias, agora voltei e vim ler tua casa.

Abraço-te com carinho, sempre.
Germano

Cla disse...

Que bonito.Eu poderia falar de mim mesma nesse mesmo sentido sem sentido,talvez não tão bem,ou com tanta profundidade,mas me identifiquei,porque tb hoje me banco(tento),embore as vezes canse.Parabéns,e obg por compartilhar mais um texto tão profundo e tão rico.
=*

Anônimo disse...

...assinar a vida, e bancá-la com galhardia de quem sabe o que faz, não é feito para qqr um...somente os corajosos que se olham com olhos de ver, podem fazê-lo como você tão bem o fez aqui...doído em cada letra, sensível em cada palavra, mas forte na extensão do grito vindo da alma linda que tens...por isso te amooooo!...aprendo tanto aqui, my God!...muahhhhhhh, lindeza!

O Profeta disse...

Mágnifico texto...


Doce beijo

Calu Baroncelli disse...

Cada um é responsável por aquilo que vê.
Você é inteiramente responsável pelo que é.
Você responde por isso.
Esse texto foi uma coisa.
A coisa que a gente coisa quando quer coisar, aquela mesma coisa que a gente chama de coisa quando não sabe exatamente como chamar.
Sacou?
Só sei que nada sei, mas eu também assino por não saber o que não sei e saber o que sei, se é que sei o que é saber.

A minha postura de sempre é, justamente, a descompostura total.
E, eu assino por isso.

Anônimo disse...

Até os teus textos secos, nos molhar de sensações!
Beijos

Assim que sou disse...

Li algumas vezes o teu texto e até pensei em não comentar. Na verdade ele é tão completo, denso, pungente que não cabe explicações. Mas depois pensei que gostaria de te dizer que assinar embaixo da vida é escolha. Você escolheu assim. Posso te dizer que também. A exposição dessa firma reconhecida é dura de aguentar, às vezes. Mas é melhor do que a omissão da alma, do esconderijo das perdas, como se elas não fizessem parte do jogo. Jogar com o compromisso de ganhar é que é duro demais.

O comentário ficou meio delirante, mas escrevi no susto da emoção.

bjs. Veronica

Elcio Tuiribepi disse...

Depois de ler o texto posso testemunhar a favor dele, e nem precisa pedir perdão pela pedra chutada, o lixo derrubado e também pelas garrafas quebradas, a vida assim, amanhã se precisar, chute, derrube e quebre tudo novamente,chore, ria e assine embaixo, pois testemunhas você já tem...um abraço na alma, obrigado pela visita

Jaqueline Lima disse...

Eu sou testemunha não presente. de alguém. que pocuo conheço. mas que em palavras me traduz um mundo particular. peculiar. vertente. ausente. ciente. Bravo! quem sabe somos nós. alguns conhecem. mas talvez não entendam. outros tantos. dizem saber. mas nem sequer pensam!!!

bjooosss menina!

Anônimo disse...

Ser testemunha da própria Vida e dispensar todas as outras: isto é fundamental.


Adorei teu poemanifesto!

Abraços, flores, estrelas..

Joana Roque Lino disse...

Obrigada. Virei cá com mais tempo. Gostei desta casa. :)

fjunior disse...

tem um quê de finitude, de findar... me parece ser uma reflexão pra um momento de mudanças... ou um olhar de um novo ponto de vista... um olhar com saudade do que já foi, pra dali olhar pra o agora e se orgulhar...

Ricardo Jung disse...

soa como o sal, na dieta de quem se tornou hipertenso

como perder a cor, virar robô, e namorar um computador

realismo sintético de grande valor e honestidade


so...
http://artepoiesis.blogspot.com/

Sobretudo disse...

"Passado meu, testemunha eu."
Adorei isso. É a mais pura verdade. Quem, além de nós mesmos, seria capaz de falar o que somos, o que fazemos.
bjos

Letícia disse...

Eu assinei minha vida, mas me roubaram. Já tomei de volta e fui roubada de novo. É o risco que a vida traz. Viver correndo o risco de não poder ter direitos. Hoje tô vivendo sem assinar... tipo "largada", mas vivendo do que posso.

Narradora disse...

Gostei muito do texto, muito mesmo - coloquei na caixa dos prediletos.
Tomar as rédeas da própria vida, ser senhora de si, sem esconder cicatrizes e sorrindo de corpo inteiro. Bom jeito de viver.
Bjs

Germano Viana Xavier disse...

Li de novo esse, Tebet.
Caneta preta borrando o papel com sangue.

Um abraço.
Germano

João Neto disse...

"Hoje acabo em texto seco. Em rudes palavras sem ligação." (Camilla)

Perfeita obra-prima foi o que você acabou de assinar. São tantas palavras cheias de verdade e vida que quase consigo ouvir o próprio poema lendo-se para mim. Suas palavras possuem ligação, e ainda mais, possuem eco em quem as lêem. Perfeito. Nada menos que isso.