quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Sem sacrifício


O corpo dele é assim, ó.. bem longe do meu. Ele conta histórias de heróis tribais e eu tento pegar no sono como criança que resiste ao cansaço. A voz dele me acalma mesmo, mas não durmo. Me seguro acordada, na esperança que no final da história ele me surpreenda com um aquário de vidro com dois peixinhos dentro. Perco o sono e eu mesmo acabo virando peixe que não escreve só de mim. Egoísta de dor. Falo, falo e o eu não sai. Permito, então, a junção de poucos aquis e alis, que rabiscaram traços de criança para ser eu. Que não aperto a caneta, que relaxo por desistir da estética. Eu que encho baldes e os chuto. Eu que morro encostada antes do mundo acabar em barranco. Assim.
Eu, eu, eu. Coisa chata, eu. E como telefone sempre toca na hora errada, atendo com descaso. Já disse que não faço mais sacrifícios. Só o que me vem com prazer. Eles se oferecem pra vir me buscar. Aceito. Me arrumo até sem sacrifício. Eles chegam de pernas duras e olham curiosos. Eu tenho as pernas moles de quem sabe o que põe pra dentro da cabeça e assopra pra fora.
Estão todos na minha casa de tijolos. Todos. E a curiosidade mostra sorrisos. Eu aprecio sorrisos. Mas não faço mais sacrifícios, pois agora me sinto bem.
Vamos ao teatro e depois a um bar. Mas eles não se levantam do sofá. Conversamos conversas tolas de falar rolando. Tudo curiosidade. E eu falo até onde não é sacrifício. Fico com vontade de já ir. Planos são feitos para serem colocados em prática. Quero ser platéia. Vamos gente. No carro:
- Mas você está bem mesmo?
- E por que não estaria?
- Ah, seja honesta vai! Não está com saudade dele?
- Estamos preocupados, seja sincera.
Não! A curiosidade queria o mal. E eu não faço sacrifícios. Acho que a modernidade não combina com sacrifício. A vida hoje é só pra ser feliz.
Abro a porta do carro. Sem raiva, rancor ou ódio. Sem curiosidade, interesse ou respeito. Pronto, agora está acertado: eles querem saber de mim e estão curiosos pela parte ruim. Eu, que não faço sacrifícios, vou embora. No caminho de casa o chão me ilumina. Sinto-me forte por não fazer sacrifícios. Certo orgulho. Eu, eu, eu! Sempre eu, argh!


Foto by Karcos. Deviantart.

8 comentários:

Alexandre Henrique disse...

Mundo perigoso este contemporâneo, alimenta as nossas crianças com universos multicoloridos e brilhantes, que matam elas com uma curiosidade infinita.
Sim é forte por não fazer sacrifícios.
¨Eu, eu, eu! Sempre eu, argh!¨ é uma maneira linda de definir o que birra, mas sabe dividir, sem sacrifícios...
Ah este texto protege tanta coisa, tantos tijolos, tantas coisas ....mas é assim mesmo, sem sacrifícios, vale apena, afinal quem vai da vida a tudo depois?
Ah Camilla você escreve como uma amiga.

Anônimo disse...

a curiosidade nem sempre é perniciosa.
e os tijolos também caem...
os teatros as vezes são chatos e o chão sempre é o limite, com ou sem luz!
bisu

leilinha

Adriana Gehlen disse...

Já disse que não faço mais sacrifícios. Só o que me vem com prazer.
Eu e eu.

Ricardo Jung disse...

minha sabiá, minha zabelê, toda meia-noite eu sonho com você, se você dormir eu vou sonhar pra você ver...

Anônimo disse...

O único sacrifício que vale a pena é aquel que fazemos em defesa da própria LIberdade!


Abraços, flores, estrelas.

fjunior disse...

não fazer sacríficios nem sempre é fácil... nem sempre, mas é excelente qdo se consegue... beijos
bom final de semana.

Letícia disse...

E tem como fugir desse "Eu", Camilla? Acho que até em textos científicos o Eu fica lá se exibindo. A gente que escreve vive através esse Eu o tempo todo. Me fez pensar... e modernidade não combina mesmo com sacrifício. Combina com prozac e um pouco de falsidade pra se sentir melhor.
Bjs.

E adoro seus textos modernos porque vivo na modernidade e Platão não me diz muito sobre mercado de trabalho, Tpm, relacionamentos e outras coisas mais.

pianistaboxeador21 disse...

E eu tb, que vim parar aqui de curiosidade, lendo o blog da Alice e tomo essa porrada com luvas de pelica no meio da cara.
É terrível quando chega a noite de sábado e todos estão escrevendo melhor que nós.
E eu, nessa condição humilde de homem, fico tentando entender o que quer que seja sobre vcs, mulheres, mas não entendo nada e me embriago e adormeço "como um cão tolerado pela gerência por se inofensivo".
Parabéns.
Daniel