quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Ar recondicionado




Deitei no sofá, feito de almofadas de areia de uma praia deserta. Estendi o corpo. Encostei a cabeça numa altura improvisada. Chovia. Todas as janelas fechadas. A porta, a prova de som, fechada. Nada de ar. Respirei dentro de mim mesma, busquei ar em túneis que estão comigo desde a primeira viagem. Usei tudo o que tinha. Pouco sobrava. Foram poucos minutos e em mais alguns: sem respirar.
Olhei para o céu branco em cima do sofá: concreto, gesso e a saída do ar condicionado interno. Uma folhinha picotada em algumas fatias fica colada à saída do ar para avisar os dormentes que ele está ligado. A cabeça girava, o monstro acordava e queria caminhar. Voar. Usar e abusar do corpo que restava.
As pálpebras dançavam freneticamente, brincando de deixo e não deixo você ver. As garras, que quando vou à manicure chamam de dedos, começaram a inchar. As pontas dos dedos pareciam crescer pelo minuto. O pescoço endureceu e chama-se pedra. Consegui subir o morro e carregar a pedra, virá-la para baixo e olhar minhas mãos. As pálpebras me protegeram. Feche! Não veja! Cuidado com o monstro que acorda.
Os fios dos meus cabelos estavam gelados, duros. Congelaram ao sal das lágrimas. E viraram estátua. Um movimento desavisado e eles quebram. O papelzinho do ar condicionado continua a ventilar, dançar, brincando comigo, dizendo sim, eu funciono. Não pode brincar assim, com quem está congelando, inchando e hospedando monstros. Não pode.
Chega de pálpebras brincando, abro mesmo e olha aqui ar condicionadooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo: entrei.
Estou dentro do tubo do ar condicionado. Caibo aqui? Meu corpo, que agora é corpo de novo, desliza por túneis com pouca cor. O frio é intenso, mas o cabelo descongelou. Minhas pernas movem como sereias sozinhas, leves, guelras que nadam no azul. Meu corpo é tão grande que os olhos estão muito distantes das pernas. Olho elas de longe. Olá pernas, como estão longas. Dedos que já foram garras acenam para mim. Também estão longe. Abaixo e a força do ar me leva junto, não tem como grudar a cara no chão e esperar passar. Vou flutuando ao barulho do ar. Viu monstro, fugi aqui dentro e você está ai fora, deitado no sofá. Buuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu.
O corpo, o meu, cresce, está ficando cada vez mais longo dentro da caixa do ar. De tão forte o vento, estica, o corpo que obedece ao balé aéreo de fuga de monstro e estica. Meus olhos, agora menos vidro, enxergam melhor. Outra saída. Deve ser a central do ar condicionado. Ponho os longos braços, que tão só braços, para frente, em posição de mergulho e uuuuuuuuuuu mais um mergulho de olhos fechados.
Abro, estou em outra sala. Caio no chão. Direto da saída do ar condicionado. Silêncio. Sala vazia de gente, cheia de peixes. Azuis, de água, vermelhos, pretos, beges, sem cor, belos e feio. Um deles, o vermelho olha para mim e diz:
-Vem nadar.
Porra, que merda é essa de peixe falar? Como se o ar condicionado não fosse o suficiente.
-Não entro, não nado e peixe não fala! respondo.
-Ok.
Cara, agora peixe fala inglês.
Surpresa: estou molhada. Não sei de que. E o cheiro é de mar. O vermelho me encara. Chega, não olho mais para ele. Viro pra trás e tenho pouco tempo pra pensar, pois vem uma onda do tamanho do mar todo. Abaixo, encosto o nariz no chão (agora sim!) e a onda fica muitos de alguns minutos passando. Uma onda enorme. Quando finalmente o revolver de areia a água salgada acabam, ponho a cabeça, agora em tamanho normal, para fora. Quase sem fôlego. Mais um pouco e eu teria me afogado. Já estou seca. Assim, como num passe de mágica: sequei!

15 comentários:

Luciana disse...

Como diriam aquelas chamadas de filmes da Globo: que viagem alucinante!!!
Sério, muito doido tudo isso. Escreveu muito bem, parabéns!

Adorei seu blog!

Dauri Batisti disse...

Leitura sufocante, mas ainda bem que ao final a cabeça saiu para o ar. Gostei da dica na primeira frase.

Beijo.

Carolina Sperb disse...

delícia de texto. instigante. viajei em cada pedacinho... senti meu cabelo descongelar...

beijo, querida
cuide-se

Letícia disse...

Secou e escreveu. É que a gente mergulha fundo demais pra buscar nossas histórias, aí encontra peixe falando e pernas como quem conversamos e um monte de pensamento.

É história, Camilla.
E não há pausa que nos faça calar.

Bjs.

E sempre venho.
E agora escrevemos cartas.

Germano Viana Xavier disse...

Tebet,

você está lendo muito os simbolistas Apollinaire ou Breton. E olhando muito o Dali.
Foi um sonho isso ou um pesadelo?
Viagem é pouco pra dizer.

Mas você faz refletir. Choca.
E o fantástico sempre nos permeia.

Um carinho em uma primeira leitura.
Continuemos...

Germano Viana Xavier disse...

Continuemos sim, Tebet.
Porque é de choque que precisamos...

E um espanto é sempre bom.

Um carinho sincero.
Vamos...

Ju disse...

E ter secado deve ter sido bom. Mas permaneço congelada.

Texto fantástico!

Adriana Gehlen disse...

d-e-l-í-c-i-a

Anônimo disse...

eita coisa maravilhosa!!!


bjoks

Anônimo disse...

Só duas palavras para esse seu texto: DE MAIS!!! Bjus e boa semana.

http://so-pensando.blogspot.com

aluaeasestrelas disse...

Como já falaram, um texto instigante mesmo... Envolve e questiona ao mesmo tempo. Muito bom!!!
Bjos!

Assim que sou disse...

Alguém aí para cima citou Dali. É inevitável a comparação ou a lembrança. Gosto de literatura nonsense; gosto da arte que não se explica. Emoções não se explicam. Principalmente quando já sabemos,desde o momento em que buscamos o risco e a aventura, que existe saída lá na frente. Não necessariamente a melhor, a mais fácil, a mais sensata. De vez em quando até encontramos peixes made in USA. Mas de que vale o jogo se não há risco. De que vale dormir se não existe sonho. De que vale escrever se não for instigar e destilar.
Camila, é chegada a hora de secar e ir em frente. Go on!!!!!

beijos. Veronica

João Neto disse...

Recondicionando o ar e criando condicionantes para viver...

Somos assim, meio sonhadores, meio covardes, meio no-sense, meio que acreditando no Papai Noel, meio que sabendo que tudo é um grande teatro. E seguimos adiante. Sempre.

Texto lúdico. Cheio de subtextos. Cheio de uma vida que não cabe entre quatro paredes.

Bjo para a jornalista poeta.

Jacinta Dantas disse...

Caramba!
a gente vai junto, permitindo-se alucinar, desequilibrar, desorganizar e... como num passe de mágica, respirar e voltar a olhar a si mesmo e ao mundo.
Beijos

Tilty disse...

ao desatento, parece dislexia. mas é prosa da boa, com espírito de poesia.